Misako estuda cada detalhe do filme, passa dias tentando traduzir em palavras o “céu pálido” visto na tela. Ela não deve interferir no entendimento da película, não pode invadir a fala dos personagens nem expressar opiniões pessoais. Tem de estar presente e ausente ao mesmo tempo. Seu desafio é fazer com que cegos ou pessoas com a visão reduzida entendam a trama e, mais, se emocionem.
Ela é a personagem principal de Esplendor (Radiance/Hikari), filme japonês de 2017 que mostra o dia a dia – e os conflitos – de uma profissional que trabalha com audiodescrição. “Fazemos com que um adulto que perdeu a visão perceba que pode voltar a fazer as coisas de antes”, resume Livia Motta, audiodescritora “na vida real” e autora de livro sobre o assunto. “A audiodescrição abre caminhos para a leitura do mundo.”
Esses caminhos, porém, já poderiam estar um tanto mais abertos no Brasil. É que, desde julho de 2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146) estabelece, no Artigo 67, que “serviços de radiodifusão de sons e imagens devem permitir o uso de subtitulação de legenda oculta, janela com intérprete de Libras e audiodescrição”, na tentativa de promover a inclusão de cegos e surdos.
Prazos
A Agência Nacional de Cinema (Ancine) então formou grupos de discussão sobre o assunto e, entre outras questões, foram definidos prazos para a implementação da acessibilidade nos cinemas. E aí as coisas se complicaram.
Em setembro de 2016, a Instrução Normativa 128 definia que, em 14 meses, 50% dos grandes exibidores (a partir de 21 salas de cinema no País) e 30% dos pequenos (para grupos de até 20 salas) deveriam ser acessíveis, chegando a 100% das salas dali a 24 meses, ou seja, em setembro de 2018. Pouco mais de um ano depois, nova Instrução Normativa, de novembro de 2017, estendia os prazos, começando com a acessibilidade parcial em novembro próximo. Mas há quem acredite que será difícil cumprir a norma mais uma vez.
“A lei brasileira é única no mundo, pois também exige a acessibilidade via Libras (Língua Brasileira de Sinais), o que criou grande resistência dos exibidores”, diz Paulo Romeu, consultor técnico da Organização Nacional de Cegos do Brasil e autor do Blog da Audiodescrição.
É que, como acontece com a TV há mais tempo, a acessibilidade via Libras, para surdos, exige aquele “quadradinho” com o intérprete em um pedaço da tela, o que poderia causar estranheza no público em geral. “Enquanto o mundo trabalha em uma solução de acessibilidade tanto no hardware quanto no software, o Brasil tem essa outra questão (das Libras) para ser resolvida”, afirma o presidente da Ancine, Christian de Castro.
Ele aponta ainda uma outra dificuldade: os sotaques. “Uma legendagem de Libras no Sul teria diferença de uma no Norte e Nordeste. Como no interior de São Paulo é diferente da capital ou do Rio. Isso é uma particularidade brasileira.”
Pepino
“O Brasil tem uma lei de inclusão ampla, com uma força grande, que fala de acessibilidade de sites e manifestações culturais. Por outro lado, a lei assustou muita gente que não tinha pensado nesse público”, acredita Mauricio Santana, vice-presidente da Associação Brasileira de Audiodescrição (Abrad) e diretor da Iguale, empresa que produz conteúdo acessível e representa no Brasil o aplicativo de acessibilidade MovieReading.
Público que não é pequeno: de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 6,5 milhões de pessoas têm deficiência visual no País. Outros 9,7 milhões são deficientes auditivos.
Se o pioneirismo dificulta todo o processo, a pirataria também não ajuda a discussão a andar. Enquanto a legenda descritiva e a audiodescrição podem ser feitas pelos próprios estúdios, a linguagem de Libras teria de ser trabalhada por terceiros, o que aumenta o risco de as cópias de filmes chegarem às mãos dos camelôs muito antes de irem para as salas de projeção. “A gente quer ter acessibilidade, que o cinema chegue ao maior número de pessoas possível, sobretudo o filme brasileiro, mas não podemos correr o risco de dilapidar o valor da propriedade intelectual”, diz Castro, da Ancine.
Recente
Realidade nos Estados Unidos desde os anos 70, a audiodescrição é relativamente recente no Brasil. A primeira vez que o recurso apareceu por aqui foi em 2003, no festival de cinema Assim Vivemos, de filmes sobre pessoas com deficiência, patrocinado pelo Banco do Brasil. De lá para cá, algumas iniciativas começaram a promover a inclusão dos cegos às salas de cinema.
Uma delas é o Festival Melhores Filmes, do Cinesesc, em São Paulo, que há sete anos exibe películas com legendas abertas (detalhadas) e audiodescrição feita ao vivo. “O festival é uma missão, mas gostaria que toda a programação fosse acessível”, afirma a gerente adjunta do Cinesesc, Simone Yunes. “Já melhorou muito, mas no começo as distribuidoras não entendiam por que tinham de mandar o DVD do filme antes, foi bem difícil, e ainda é, mas isso começa a mudar.”
A mudança é bem mais lenta do que gostariam os beneficiados. Dos 42 espaços, com várias salas, listados em São Paulo pelo Guia de Acessibilidade Cultural, feito pelo Instituto Mara Gabrilli, apenas cinco oferecem opções de audiodescrição e legendagem, mediante pedido. A maioria das salas limita a acessibilidade de cegos a elevadores com aviso sonoro, guia vidente e cardápio do café em braile.
Procurados, Cinemark, Cinépolis e Grupo Severiano Ribeiro, os três maiores exibidores do País, segundo ranking de 2016 da Ancine, não quiseram comentar.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.