Dois franceses rodaram mais de 25.000 km para mostrar a importância social do futebol; projeto prevê arrecadação de fundos para entidades beneficentes
Percorrer as Américas desde o Canadá até a Argentina e, então, entrar no Brasil para assistir à Copa do Mundo 2014. Este roteiro, por si só inusitado e altamente aventureiro, ganha ainda mais charme e emoção a bordo de um Citroën 2CV 6 Especial, fabricado em 1988 e… pintado como uma bola de futebol da década de 1970. A escolha dos países, a aquisição do carro e sua “caracterização” é apenas o começo da história dos franceses Eric Carpentier e Pierre Pitoiset ao decidir assistir à Copa no Brasil.
Não se trata de uma viagem meramente recreativa. Ela faz parte do projeto “Pan American Futbol”, elaborado pela ONG “A Cup of The World”. O desafio de chegar ao Rio de Janeiro, partindo da França — onde o carro embarcou em navio para o Canadá — e percorrendo mais de 25.000 km em cerca de 180 dias, foi permeado por encontros em torno do futebol. A ideia é usar o esporte para juntar pessoas e criar uma convivência com diferentes povos e culturas durante a viagem. “Um desafio lúdico da viagem era jogar futebol todos os dias com as pessoas com quem encontrávamos. Fizemos o tanto quanto possível, tendo, em média, um jogo a cada três dias de viagem. Para nós, era um meio eficaz de encontro, uma forma única de convergência e troca com as pessoas”, explicam Eric e Pierre.
No Brasil, mais especificamente em Porto Alegre, a tripulação do Citroën 2CV ganhou um terceiro integrante, o também francês Marec Ludovic, temporariamente morando na Guiana Francesa. Os três afirmam ter “muitas coisas boas” para falar do Brasil: “A recepção e a hospitalidade das pessoas é surpreendente! Além da dimensão continental (que eles puderam conhecer na prática durante a viagem entre Porto Alegre e Rio de Janeiro), outro ponto que chamou muito nossa atenção foi a diversidade cultural. Evidentemente, o país respira o futebol, não havendo pessoas indiferentes: conhecemos todos os times e campeonatos do Brasil somente perguntando para as pessoas qual o seu time do coração”, brinca Eric. Mas, não satisfeitos com os 25.000 km rodados, os três aventureiros ainda têm um grande desejo: estacionar o Citroën 2CV dentro do Maracanã!
A viagem
O Citroën 2CV 6 Especial foi enviado de navio da França ao Canadá. Após os processos alfandegários, Eric e Pierre dirigiram até Nova York, Estados Unidos. De lá, seguiram para Washington, Atlanta, Nova Orleans, chegando a Nuevo Laredo, já na fronteira mexicana. Dirigiram então até a Cidade do México, seguindo pela Rodovia Pan-Americana para atravessar a Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá. Entre Colon e Cartagena, o percurso foi feito de barco. Já na Colômbia, a dupla retomou a Pan-Americana e seguiu para o Equador, Peru e Chile, até a localidade de Coquimbo.
Em seguida, Eric e Pierre subiram para a Cordilheira dos Andes por Paso Jama, “boa parte desta subida em primeira marcha, devido ao ar rarefeito, já que estávamos acima de 5.000 metros de altitude”, afirma Pierre. Passando para o lado argentino, a dupla buscou entrar no Brasil pela cidade de São Borja, no Rio Grande do Sul. A partir daí, o roteiro em solo brasileiro passou pelos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. O restante da rota ainda não está definido: “Vai depender do tempo que teremos. Talvez conhecer as regiões centrais, como as cidades de Belo Horizonte e a capital Brasília”, afirmam.
O carro: Citroën 2CV 6 Especial
Mas por que utilizar um pequeno Citroën 2CV para uma viagem tão longa? Eric, proprietário do carro utilizado na viagem, responde: “O 2CV corresponde ao espírito do projeto, tanto em forma quanto em função. Seu desenho arredondado remete a uma verdadeira bola de futebol. Bastou adicionar algumas linhas para formar os gomos… No fundo, o Deuche (apelido do 2CV na França, derivado do nome em francês – “deux chevaux”) corresponde aos valores que queremos destacar: popularidade, universalidade e paixão. Ele foi o primeiro carro amplamente acessível na França devido à sua valentia e robustez, conquistando o coração de várias gerações de consumidores. Um verdadeiro ícone”, conta.
O Citroën 2CV foi comprado por Eric no final de dezembro de 2013, um mês antes do início da viagem. Tudo começou com o contato com uma congregação de freiras na França. “Lá ficamos sabendo que havia uma irmã que tinha o carro há mais de 20 anos. Negociamos e compramos o veículo, mas com a promessa de visitar uma das unidades da comunidade na América do Sul. Mais precisamente em Vallenar, no Chile. De 2CV…”.
Uma atenção especial foi dada para a manutenção do carro durante a viagem. Lubrificações, limpeza, trocas de óleo… tudo para manter “la deuche” o menor tempo possível parada. “Tivemos que realizar alguns acertos e adaptações na carroceria, uma troca de bobina, regulagens na marcha lenta e uma reparação do freio de mão (quando da travessia Panamá – Colômbia). Também tivemos trocas de pneus: 2 vezes cada pneu da frente, nunca atrás (mas vamos ter que trocar). Mas nunca tivemos um pneu furado!”, complementa Eric.
Mas e depois da viagem? Eric confessa ainda não saber quais os próximos passos com o Citroën 2CV. “O carro precisa voltar para a França, mas ainda não sei como… Talvez fique no Brasil, Argentina ou Chile até a Homeless Cup, em Santiago, participando depois do Encontro Internacional de Citroën 2CV em Coquimbo, no final de outubro. Aí vou repatriá-lo. Estou trabalhando para obter a verba necessária para isso.”
O “Pan American Futbol”
Embora legalmente estabelecida em Mouvaux, no norte da França, a associação “A Cup of The World” não tem sede física. O projeto “Pan American Futbol” tem como objetivo aproveitar a popularidade e universalidade do futebol. O slogan do Brasil na Copa (“Todos juntos num só ritmo”) foi um forte inspirador. Ao final da viagem, Eric e Pierre pretendem lançar um livro e um DVD sobre a experiência.
Em 2012, a “A Cup of World” implantou um programa de ajuda na Índia denominado “Small Ball, Big Kids”, com envio de treinadores, organização de torneios e inscrição de jovens em campeonatos locais de futebol. Em janeiro e fevereiro de 2012, Eric andou 1.200 km com a bola no pé entre as cidades de Lille e Marseille, a fim de arrecadar recursos para a implantação de dois programas de futebol em orfanatos indianos.
Mais informações podem ser obtidas na página da ACOW no Facebook (www.facebook.com/acupofworld).
Citroën 2CV: para saber mais
O 2CV nasceu de uma decisão lógica de “marketing”, para empregar uma expressão atual. Em 1935, o grupo Michelin, sendo proprietário da Citroën, estava consciente da necessidade de diversificar a oferta de produtos da marca por meio de novos mercados. Desta forma, encomendou o estudo de um veículo pequeno — TPV (Trés Petite Voiture) —, um veículo de segmento inferior ao modelo Traction Avant, que já usava carroceria do tipo “monobloco”. Estávamos em 1936/37…
“Destinado ao mundo operário e rural”, como especifica o próprio caderno de encargos de Pierre Jules Boulanger, diretor da Citroën à época, o 2CV deveria ser muito leve, a fim de baixar os custos de produção. Deveria ser acessível a uma clientela que até então não tinha possibilidade de adquirir um meio de transporte individual. Nesta ordem de ideias, a concepção da carroceria deveria ser tão simples quanto possível. Esta particularidade induziu ao desenvolvimento de uma suspensão móvel e com grandes amplitudes, aliando conforto e confiabilidade. Além disso, um único farol assegurava a iluminação!
Em 1939, cerca de duzentos veículos estavam prontos para serem expostos, mas, com a declaração da 2ª Guerra Mundial, todos foram destruídos, à exceção de quatro precisamente escondidos (enterrados no chão de uma das fábricas). Durante o conflito, os estudos prosseguiram clandestinamente, com a disponibilidade e o tempo como aliados.
O conflito termina em 1945, e o 2CV apresentado três anos depois no Salão de Paris já é sensivelmente diferente ao modelo anterior, apesar de conceito geral equivalente. Sob a direção do escultor e estilista Flaminio Bertoni, o aspecto melhora sensivelmente. O metal substitui o alumínio e o magnésio. Molas helicoidais e amortecedores de fricção asseguram a suspensão. O motor, de 375 cm³, é arrefecido a ar.
Estas novas características permitiram melhorar a montagem e reduzir os custos. O habitáculo evolui, apresentando um novo painel de instrumentos, dois limpadores de para-brisas (ao invés de um), novos bancos e a melhora significativa da iluminação através da utilização de dois faróis.
De 1948, ano da sua apresentação, a julho de 1990, data final da sua fabricação, foram produzidos 5.114.940 2CV (entre carroceria de passeio e furgão) nas fábricas de Levallois e de Ivry (França), de Vigo (Espanha) e Mangualde (Portugal). Além disso, o modelo e seus derivados também foram fabricados em países como Argentina, Chile, Irã, Costa do Marfim e Vietnã.
O motor passou de 375 cm³ e 9 cv para 602 cm³ e 33 cv. Ele fez tudo, transportou tudo. Foi um fenômeno, tanto mecânico quanto sociológico. Estimado em todo o mundo, o 2CV que participou de tantas expedições, coletivas ou não, representou como indicava uma publicidade, “o amor livre, o amor eterno”.