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Coleção de Gregório de Matos, Boca do Inferno, é lançada

Muito do que se fala sobre Gregório de Matos e Guerra (1663? -1669?) pode ser pura invenção. O que se sabe sobre ele foi transmitido às gerações futuras pelo biógrafo Manuel Pereira Rabelo, que o descreveu como um doutor de vasta cabeleira e barba em demasia, que odiava os hipócritas e gostava de desafiar os poderosos. Filho de portugueses, frequentou o Colégio dos Jesuítas, na Bahia, continuou seus estudos em Lisboa e voltou ao Brasil já com a reputação de um poeta satírico e desbocado, o que lhe valeu a alcunha de Boca do Inferno.

Apropriada, mas um tanto injusta em relação a alguns poemas a ele atribuídos. O Boca do Inferno pode não ser o libertino profano, sem consciência dos limites entre público e privado, que anunciou o barroco entre nós. É possível que tenha sido vários libertinos, como sugere a reinterpretação dos professores João Adolfo Hansen e Marcello Moreira na coleção de cinco volumes de textos reunidos do códice Asensio-Cunha lançada pela Autêntica Editora.

Os quatro primeiros volumes trazem os poemas coletados nesse códice, que circulou em Salvador entre o fim do século 17 e a primeira metade do 18. Por essa época, os poemas sofriam transformações contínuas por força das variações textuais provocadas pela audição equivocada de pessoas. Por meio da tradição oral, esses ouvintes transmitiam a outros interlocutores erros por vezes graves, trocando, por exemplo, “zorra” por “porra” – atribuindo ao poeta mais palavrões do que comportava sua mente.

“Na Bahia, no fim do século 17, havia uma prática de fazer a poesia circular em folhas manuscritas e, numa população de 97% de analfabetos, os poemas eram lidos por letrados para pessoas do povo, que os decoravam para atacar seus inimigos, o que podia produzir variantes incômodas”, observa o professor João Adolfo Hansen, que foi orientador do colega que o ajudou a organizar a coleção, Marcello Moreira.

O próprio biógrafo do Boca do Inferno, Manuel Pereira Rabelo, recolheu poemas que circulavam em Salvador oralmente ou em folhas volantes, atribuindo-os a Gregório de Matos e Guerra, que viveu na capital baiana entre 1682 e 1694. O retrato fictício do poeta, que virou biografia oficial, era, na verdade, o prefácio da compilação desses poemas. Mais tarde, no século 19, o cruzamento entre ficção e realidade viraria hábito e até mesmo insuspeitos religiosos, impedidos de mentir, anteciparam em anos o “new journalism”, inventando novas histórias a respeito do Boca do Inferno, baseadas em poemas atribuídos a ele.

O cônego carioca Januário da Cunha Barbosa, político de grande reputação no Primeiro Reinado, foi um deles. Um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ele publicou dois poemas atribuídos a Gregório de Matos no número 9 da revista do instituto, reaproveitando os dados biográficos de Rabelo que ajudaram a transformar o Boca num personagem mais próximo dos escritores do século 19 do que dos barrocos do século 17.

“O primeiro códice tinha 800 páginas costuradas com poemas que podem não ser de Gregório”, argumenta Hansen. Em outros livros, ele já analisou a relação do poeta com a retórica discursiva do século 17 na Bahia, relativizando a fama de transgressor que atravessou séculos e chegou a ser aproveitada por Caetano Veloso ao se apropriar de um poema atribuído a ele na composição Triste Bahia. Veloso faz do poema um libelo político contra os desmandos do Estado e da sua “máquina mercante”.

“No século 20, Gregório vira anarcotropicalista, crítico da sociedade colonial, assim como no século 19 foi visto como doente, um tarado sexual”, diz Hansen, sugerindo que a leitura do Boca do Inferno seja feita como um autor do século 17, “uma era monárquica, absolutista, que não tem nada a ver com a sociedade burguesa do século 19”. Até a obscenidade pela qual Gregório é condenado, segundo ele, era uma convenção poética. Na poesia católica do Boca, “o obsceno é alegoria do pecado mortal”, justifica o organizador, lembrando que a sua composição de tipos vulgares, desses que Dante encontra no inferno, não é nem subversiva nem transgressora, como defendem outros estudiosos de sua obra.

“Não podemos esquecer que estamos num mundo do Santo Ofício, de valores fidalgos, de escravidão”, sugere Hansen, dizendo que as sátiras de Gregório não conhecem o psicologismo positivista do século 19, estando mais próximas do que os jesuítas chamavam no seu tempo de “theatrum sacrum”, que definia a representação em geral. Se tudo era teatro, então até mesmo o poema satírico atribuído a Gregório que menciona as relações homossexuais entre o governador da Bahia Antonio Luiz Gonçalves da Câmara Coutinho e seu capitão não deve ser lido sem considerar o peso da condenação do sexo anal pela Igreja, sugere Hansen, a respeito desse que é considerado o marco zero literário gay no Brasil, a primeira representação da homossexualidade na literatura brasileira, segundo outros estudiosos.

“Ele ataca o governo lembrando a hierarquia da Igreja católica sobre o nefando ato homossexual, que a Inquisição condena como coito estéril.” O satírico pode, então, indicar não um libertino por trás dos poemas em que zomba das instituições, mas uma zombaria maledicente de um tipo submisso ao ritual teatral e aos preconceitos da própria Igreja. “Mesmo essa fama de bom cristão que se arrepende no fim da vida é questionável, pois, numa outra história, ele parece ter feito piada ao associar o sangue de Cristo a um surto de sarampo do filho do vizinho.”

No quinto e último volume da coleção Para que Todos Entendais – Poesia Atribuída a Gregório de Matos e Guerra, os autores analisam os códigos bibliográficos do corpus poético colonial e propõem uma nova história da crítica textual no Brasil, para que algumas palavras atribuídas ao poeta sejam revistas pelos estudiosos do Boca do Inferno.

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