Seria mais fácil sorrir, como tem sido há mais de 40 anos. Uma gargalhada folgada e espaçosa, de se ouvir do lado de lá das fronteiras, que faz Fafá de Belém colher seus lírios mais vistosos. Ela surgiu assim em 1976, na novela Gabriela, cantando sem graves, mas cheia de graça Filho da Bahia em um clipe no Fantástico. Cresceu entre boleros, sertanejos, fados e carimbós cantando para fora mesmo nas tristezas de Chico Buarque, nas agonias de uma Nuvem de Lágrimas ou na suntuosidade do Hino Nacional. Quando chegou 2015, Fafá, em outro momento, voltou-se para sua Belém e fez, divertindo-se, Do Tamanho Certo do Meu Sorriso, leve e criança, como se estivesse no palco de um videokê do interior do Pará.
Aos 62 anos, Fafá começa a mudar quando olha para quem se esconde por trás do sorriso. “Houve um momento em que eu comecei a gravar minhas histórias para transformá-las em uma biografia, e isso me jogou para dentro de mim de forma muito intensa.” Chega 2019, e a mulher que cantou o Hino Nacional em 32 comícios para a campanha das Diretas Já entre 1983 e 1984 parece ter absorvido energias do mundo de fora e de dentro para chegar a um dos resultados musicais mais interiorizados e densos de sua carreira. A biografia só está no rascunho, mas um disco revelou outra mulher.
Fafá de Belém é hoje a mulher que aparece em Humana, álbum lançado pelo selo Joia Moderna, do produtor Zé Pedro. Um repertório de canções fortes tratadas com arranjos acústicos e macios, como se passados pela agulha de um vinil, e reduzidos a instrumentações pequenas o suficiente para que sua voz esquente e leve Fafá para o lado de quem a ouve. Há um diálogo novo aqui, que abre outra porta, com uma espécie de conceito de rock indie. Alinhamento Energético, de Letícia Novaes, aponta bem para essa direção. Sem os mesmos abstracionismos nos arranjos e no engajamento temático de Elza Soares – a canção de Fafá nunca seria submetida ao mesmo derretimento – os álbuns das duas seguem movimentos semelhantes. Como Elza, Fafá se dispõe ao desafio, deixando sua voz ser sustentada por uma composição moderna de pensamento mais líquido, menos óbvio, e mais desafiador.
A diferença está na tensão, no drama. Não a mesma do fado, que Fafá homenageou em um disco de 1992, gravado em Portugal, sua segunda pátria, mas da alma. Não há a postura do vozeirão de vibratos e outros artifícios que sobram em sua voz, mas a limpeza de um naturalismo que a deixa mais próxima das purezas de Angela Ro Ro do que das empostações de Angela Maria. Ave do Amor está lá para desvendar essa mulher, rock and roll com a ternura do piano de Zé Manoel, assinada por Artur Nogueira e Ava Rocha.
Há uma consciência nessa busca? Fafá escolheu ser outra desde o início do álbum? “O grande trabalho foi pensar em com que voz eu deveria vestir cada música, e saí para buscar outras vozes, outros lugares de se cantar. Eu adoro o meu passado, mas não vou ficar vivendo dele.” Quando fala em busca, há um detalhe: a Fafá que ela encontra por trás das outras sempre esteve ali, e é também para isso que se vive 62 anos.
Assim que escolheu ser uma cantora popular, sem tormentos de consciência por colocar canções em trilhas de novela e em emissoras de rádio, Maria de Fátima Palha de Figueiredo recebeu dos críticos e de parte da própria classe artística olhares de esnobismo. Seguiu assim sem crises de identidade e se especializou em falar com o Brasil que pagava as contas das gravadoras (o sonho secreto de muitas intérpretes da época). Em 1986, o álbum Atrevida recebeu platina duplo por 500 mil cópias vendidas, algo como cinco vezes mais a vendagem de discos de artistas como Chico Buarque, Gilberto Gil ou Caetano Veloso.
Quando responde se foi difícil reeducar a voz para conseguir outros resultados, ela volta a passar pelo assunto: “Minha vida é essa, não a do manifesto da boca pra fora. Não sou a moça da zona sul, não fui a moça magra”. Cantar não bastava nos anos 80. Na era da TV, era preciso haver identificação, empatia, espelho. Assim, muitas mulheres viam Fafá de Belém como uma representante que, ao lado de Elis Regina, Maria Bethânia, Zezé Motta, Marina Lima, Simone, Rita Lee, Joanna e Gal Costa, aparecia no marcante e cheio de questões tabus programa feminista Mulher 80, da Globo, dirigido por Daniel Filho. A Volkswagen, por sua vez, a viu como um farol.
O Fusca farol Fafá, com lanternas traseiras redondas em vez de estreitas, saiu em 1979, como uma homenagem à simpatia e aos seios exuberantes que, ao lado do sorriso, já eram uma marca. Aquilo nunca a incomodou, até por provar outro dos benefícios garantidos a quem decidia não brigar contra a natureza humana. E para quem achava que ela deveria ganhar royalties com a homenagem da VW, a música O Resto do Resto, de Fátima Guedes, que Fafá canta sutilmente em Humana, sem esbravejar, responde: “Me dê o suficiente / pra ter paz aqui e agora / o resto é pra quem precisa / e o resto do resto / é pra quem me explora”.
Fafá diz ainda estar “curando a ferida” na recriação garageira de Toda Forma de Amor, de Lulu Santos; vai ao mundo do feminismo terno de Joyce dizer que “é aquela que o homem quer menina, mas ao ver que não domina, foge pra não ter paixão” e pega de Jards Macalé e Wally Salomão o amor quase perfeito de Dona de Castelo. E volta a ser a Fafá de todas as faces sempre que é pega pela própria voz, transbordando, sem mais importar se está pisando no passado, no presente ou no futuro.
FAFÁ DE BELÉM
Sesc Vila Mariana. R. Pelotas, 141. Tel. 5080-3000. 6ª (12) e sáb. (13), das 21h às 22h30. Dom. (14), às 19h. R$ 12 a R$ 40
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.