Há uma necessidade de explosão em Michel Camilo. Algo que, mesmo se quisesse, não controlaria. Ele vai contra os preceitos da escola minimalista do jazz, a do menos é mais, e sofreu críticas por isso, sobretudo no início da carreira. Era um jovem chegado a Nova York direto de Santo Domingo, República Dominicana. Queria sair do círculo restrito aos latinos e partir para os grandes clubes de jazz, um bloqueio que só conseguiria vencer por tratamento de choque.
Ele tinha 25 anos, hoje tem 64, e já trazia em sua história invisível uma carga de mistérios que se manifestavam no ar no momento em que estava no palco. Camilo compôs seu primeiro tema com 5 anos, quando tocava acordeon. Ao começar a estudar teoria, aos 13, no Conservatório Nacional de seu país, sentia algo muito estranho. O professor ensinava e ele não aprendia, apenas recapitulava. Era como se já soubesse tudo. Suas mãos seguiam sozinhas pelas teclas, cheias de confiança. “Eu acredito em reencarnação”, diz ele ao jornal O Estado de S. Paulo por telefone, de sua casa, em Nova York. “Eu já havia aprendido aquilo antes, em algum lugar.”
Camilo, que prefere ser chamado de Michel, tem uma paz na voz que contrasta com as descidas de suas mãos ao inferno. Os temas mais simples chegarão inevitavelmente ao ponto de ebulição, que ele prepara com paciência em fogo brando. Sua mecânica chega frequentemente ao limite da velocidade possível dos movimentos, como se a natureza humana limitasse o que a alma tem a dizer, como se implorasse por uma mão a mais por alguns instantes. É quando explode, carregando consigo uma plateia embriagada por aquilo que já parece sonho. “É quase como se eu caísse em uma espécie de transe criativo no qual me torno um espectador de mim mesmo. Simplesmente, me ponho a serviço da música para que todas as emoções, cores e texturas possam fluir livremente.”
Suas vindas ao Brasil são raras. A primeira se deu em 1985, ao lado do saxofonista cubano Paquito DRivera, no hotel Maksoud Plaza. A segunda foi no extinto Free Jazz Festival, em 1992. Agora, vai fazer na noite desta terça-feira, 14, uma apresentação no teatro Renault, em São Paulo. Ele e o piano, para mostrar o repertório do álbum Whats Up. Questionado pelo repórter sobre as limitações da formação solo, sem baixo e bateria para riscarem o fósforo, ele sorri. “Não vão fazer tanta falta. Se estiver lá, você vai sentir.”
Uma boa pista do clima que imprime são os temas de Whats Up. Há uma certa inclinação aos clássicos, como a cubana Chan Chan, criada por Compay Segundo, em 1987, e o standard de Dave Brubeck, Take Five. A postura desafiadora do homem sentado ao piano por duas horas não passa pela exaustão. Apesar de jogar para a torcida a escolha do repertório, Camilo encerra em cada tema um espetáculo.
Ele não está sozinho na linguagem prolixa. O cubano Chucho Valdés e o panamenho Danilo Perez entendem o que Michel Camilo tem a dizer. A origem da contramão da música que valoriza os espaços, os silêncios, as poucas e selecionadas notas (como o saxofonista Mauro Senise disse ao Estado, colhidas como maçãs em uma barraca de feira) pode ter uma explicação cultural. “Nós, latinos, vivemos em países onde tudo é muito intenso e as coisas não são tão fáceis”, diz. Seria então a música passando pela autoafirmação, a sensação da vitória, o desabafo de um homem. “Quando cheguei a Nova York, os latinos não podiam tocar jazz. Era uma música que só ganhava legitimidade quando tocada pelos norte-americanos. Foi quando decidi estudar. Estudar muito. Fiz até curso por correspondência para conseguir o melhor conhecimento de harmonia e melodia.” Mas é o ritmo, na explosão, que ganha vigor e entrega o jogo de quem está sentado naquela banqueta. Só os caribenhos conseguem aquela divisão. “É nossa identidade, nossa avó será sempre a África.”
A África e, no caso de Michel Camilo, o Brasil. Mais precisamente um pianista brasileiro de nome Amilton Godoy, fundador do grupo Zimbo Trio, acompanhante de Elis Regina, atuante como músico e professor. Assim que o ouviu, Michel o colocou ao lado de grandes como Art Tatum, que lhe deu o primeiro choque ainda na adolescência. “Escutei a música de Amilton em programas de rádio em Santo Domingo. Foi quando me atraí por seu sentido rítmico de precisão sincopada. Existe algo desta influência em alguns arranjos que tenho escrito para o meu trio desde a época.” Amilton Godoy sabia da admiração, conforme conta ao Estado. “Depois de vê-lo tocar no Maksoud Plaza, fui ao camarim pedir autógrafo. Alguém me apresentou. Ele ficou surpreso e disse que, antes, queria um autógrafo meu.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.