Variedades

Com trilogia, Miguel Gomes faz da crise em Portugal uma viagem pelo maravilhoso

De passagem por São Paulo, onde veio apresentar As Mil e Uma Noites na Mostra, o cineasta português Miguel Gomes encontrou-se com o repórter para uma conversa regada a caipirinha, durante a feijoada que, no segundo sábado, é sempre o grande acontecimento social do evento. Artistas, produtores, diretores e jornalistas encontram-se para confraternizar. Gomes já tinha a experiência da Mostra. Lançou aqui Tabu, seu longa anterior. Tabu teve participação brasileira – da Gullane Filmes -, mas foi um sucesso internacional tão sólido que produtores de todo o mundo quiseram investir na realização de As Mil…. “Até tentamos nos associar, mas o produtor dele, Luis Urbano, disse que o problema não era dinheiro”, conta Fabiano Gullane.

Nada mau para um filme que já nasceu com o compromisso de colocar na tela elementos da crise que ainda assola Portugal. Nos anos de 2013 e 14, a população do país foi duramente escorchada por um governo que não parecia ter o menor compromisso humano e social, informa um letreiro na abertura de As Mil e Uma Noites. Nesse quadro de recessão, o próprio Miguel Gomes pergunta-se, de cara, se é lícito – ético – fazer um filme com abertura para a fantasia e o maravilhoso? É o desafio de As Mil e Uma Noites que, depois da Mostra de São Paulo e da itinerância do evento no Rio, começa nesta quinta, 12, a passar regularmente nos cinemas brasileiros.

A primeira pergunta, a que não queria calar – em que momento Gomes se decidiu a fazer não um, mas três filmes inspirados nos contos de Sherazade? Pois As Mil e Uma Noites divide-se em três volumes – O Inquieto, O Desolado e O Encantado. O primeiro estreia nesta quinta-feira, 12, e, na sequência, a cada duas semanas, serão lançados os outros dois.

No final, permanecerão todos em cartaz. Gomes conta: “Fui contratado para fazer um filme e terminei fazendo três, mas creio que eles, no fundo, são um só. Minha expectativa é que o público viaje nos três filmes como se fosse um.” A pergunta permanece – em que momento o filme se partiu? “Foi na montagem, quando me dei conta de que só o episódio dos passarinheiros tinha duas horas e meia. Juntando todo o material, cheguei a um filme de nove horas. Por contrato, não deveria exceder três horas e meia. Como fiz três de duas horas cada um, creio que me mantive no contrato”, e ele ri.

Um filme sobre a crise, sobre o maravilhoso. Ele viu As Flores das Mil e Uma Noites, que Pier Paolo Pasolini realizou nos anos 1970, fechando sua trilogia da vida que começou com Decameron, de Boccaccio, e prosseguiu com Contos de Canterbury, de Chaucer? “Vi agora, recente, pouco antes de iniciar meu filme. Achei interessante, mas não é um grande Pasolini. Acho muito corajoso da parte dele ter feito três filmes de época e também o fato de se haver apropriado da cultura popular, filmando com não atores e integrando figuras conhecidas a seu elenco. Tudo isso era original, mas não grande. E eu, pelo contrário, esclareço logo que não se trata de uma adaptação das 1001 Noites. Aproprio-me de frases, de personagens, até de situações, mas nada que configure uma adaptação literal.”

O Inquieto começa num estaleiro ameaçado de fechar. Cheio de dúvidas sobre o filme que pretende fazer, Gomes foge do set e, perseguido por seus artistas e técnicos, é preso por eles.

Enterrado até o pescoço, ele se vale das artimanhas de Sherazade, a filha do vizir, mulher do sultão, que prende a atenção do marido contando-lhe, todas as noites, histórias que deixa em suspenso ao amanhecer. Dessa maneira, espera resistir ao destino trágico das esposas anteriores, todas mortas. Gomes também conta histórias.

“Meu ponto de partida era contar histórias diferentes umas das outras, para refletir sobre o próprio ato de narrar. Existem muitas histórias de animais, até de animais falantes, nas 1001 Noites. Cão, galo, pássaros. Considerando como o Fundo Monetário fazia o país engolir um plano de austeridade suicida, imaginei que seria interessante metaforizar a impotência dos governantes pela via oposta. O que aconteceria se, de repente, todos redescobrissem sua potência?”

Cada filme tem seu ritmo, suas histórias. O primeiro e o terceiro talvez sejam mais irregulares, embora não menos geniais (apesar do risco que se corre ao utilizar a definição). O segundo é o melhor de todos, e não por acaso O Desolado foi indicado, isoladamente, por Portugal para concorrer a uma vaga no Oscar de filme estrangeiro. “Não tenho nada a ver com a escolha, e ela me surpreendeu, pois me parece o mais sombrio e pessimista de todos.

Se o filme terminasse com ele, seria a vitória da bancarrota estética e financeira.” Mas é no segundo que está o melhor de As Mil e Uma Noites. O episódio As Lágrimas da Juíza, além de engraçado, tem um uso da palavra que remete a Manoel de Oliveira.

“Entendo. Cheguei a comentar com meus montadores que poderia ser um filme de Oliveira, se ele tivesse fumado um (baseado).” O repórter observa que, em vários momentos, sentiu uma nostalgia profunda, enquanto a plateia ria enlouquecidamente. “Quer saber quem tem razão?”, indaga Gomes. “Acho que os dois. Dependendo do dia, eu também vejo o filme com sentimentos divididos.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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