O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, apresentado no mês passado à presidente Dilma Rousseff, está expondo fissuras no interior do próprio governo. Ao comentar a recomendação feita naquele relatório para que sejam intensificadas as buscas aos mortos e desaparecidos nos anos da ditadura, a presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a procuradora regional da República Eugenia Gonzaga, disse que é impossível atender à recomendação com os recursos que o governo destina à realização dessas ações.
Uma das principais missões da comissão presidida por Eugenia é a busca dos restos mortais dos desaparecidos. Desde sua criação, há vinte anos, ainda durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, essa é a primeira vez que um de seus integrantes se levanta para criticar a falta de prestígio e de recursos para o órgão. Segundo a procuradora, o descaso com a comissão é tão grande que ela não consegue sequer recompor seus quadros. Embora tenha sete integrantes, funciona há meses com apenas seis.
Diante desse quadro, a procuradora tem dito que é quase impossível atender à recomendação da Comissão da Verdade. “Pela falta total de recursos e sem pessoal, a comissão já deixou de lado aquilo que seria uma de suas principais funções, segundo a lei que a criou, que é a localização dos corpos dos desaparecidos”, disse ao Estado.
A comissão foi criada pela Lei 9.140, em 1995, com duas tarefas: reconhecer oficialmente os casos dos desaparecidos, permitindo às famílias obter atestados de óbitos e reivindicar indenizações junto ao Estado brasileiro; e desenvolver todos os esforços possíveis na tarefa de localizar os restos mortais.
Mas isso não aconteceu, segundo a atual presidente. “A comissão cuidou bem da questão dos atestados e certidões para as famílias, mas nunca me pareceu empenhada na busca dos restos mortais”, afirmou.
A situação teria piorado nos últimos anos. “Quando assumi, a comissão estava desfalcada e quase não fazia reuniões. Ela está fragilizada.”
Eugenia está preparando um relatório para ser enviado nos próximos dias à Presidência da República. Deve reivindicar um orçamento específico para o órgão. “A comissão já foi criada sem orçamento. Não tem sequer cargos. Os seus sete integrantes são membros honorários, que não recebem nenhum pagamento pelo trabalho. Mas é preciso mudar isso, para atender às recomendações da Comissão da Verdade”, afirma. “Também precisamos de uma equipe própria de antropologia e de arqueologia forense, a exemplo do que aconteceu na Argentina e no Peru.”
Briga
O mais antigo integrante da comissão, o advogado Belisário dos Santos Júnior, que chefiou a Secretaria de Justiça de São Paulo no governo Mario Covas (PSDB), concorda com as reivindicações da procuradora. “Fomos extremamente bem na primeira parte dos trabalhos, enquanto cuidávamos de identificar as pessoas que deveriam receber as indenizações e dependíamos exclusivamente das ações da comissão”, lembra. “À medida, porém, em que precisamos ir a campo, no início do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, houve um direcionamento dessas atividades para o Ministério da Defesa. No caso das buscas dos mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, foi só após uma longa briga que os familiares e a comissão foram incluídos no grupo de trabalho composto para realizar as buscas.”
Lula e a Dilma deram pouca atenção à comissão, segundo Belisário. “Hoje ela funciona com dois funcionários provisórios, emprestados pela Secretaria de Direitos Humanos.”
O advogado observa que, numa comparação com a Comissão Nacional da Verdade e a Comissão da Anistia, que define o pagamento das indenizações a familiares, a Comissão de Mortos e Desaparecidos seria “o primo pobres”. Diz ele: “Para funcionar, ela deveria ter a mesma estrutura, funcionários, assessores e recursos que teve a Comissão da Verdade.”
Para Eugenia, o governo deve satisfações às famílias: “A reparação é um processo. Não se trata só de encontrar o corpo. As famílias precisam ter certeza de que os restos mortais estão sendo procurados, com todas as técnicas disponíveis.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.