Estadão

Como a política brasileira influencia a disputa entre Milei e Massa na eleição da Argentina

A eleição presidencial Argentina deste domingo, 19, tem no Brasil, no seu governo e na oposição a ele alguns de seus protagonistas. Desde agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PT e a oposição bolsonarista tem tido algum papel de destaque na disputa entre o libertário Javier Milei e o peronista Sergio Massa.

A presença do Brasil na campanha ganhou força no segundo turno da eleição, com a presença de marqueteiros ligados ao PT que usaram a polarização entre Milei e Massa para lançar ataques contra o libertário na campanha na TV. A tensão ficou palpável no último debate presidencial, quando os dois candidatos bateram boca sobre suas relações com o País.

Do lado petista, a mobilização em torno da centro-esquerda argentina começou ainda em agosto, quando Massa veio a Brasília como ministro da Economia e saiu com uma promessa de financiamento no Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF) como revelou o Estadão.

A entrada dos marqueteiros petistas na campanha de Massa foi apontada por analistas na Argentina como crucial para que o peronista se recuperasse da dura derrota nas primárias e chegasse em primeiro no primeiro turno.

Analistas ouvidos pelo <b>Estadão </b>apontam que a aproximação entre o petismo e o kirchnerismo não é nova, mas ganhou força desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a prisão de Lula na Operação Lava Jato. Na época, ainda em campanha, o atual presidente Alberto Fernández visitou o petista no cárcere em Curitiba.

O primeiro turno contou também com a presença da petista, Mônica Valente, como representante do Foro de São Paulo, uma associação de partidos esquerda latino-americana que conta com representantes de ditaduras como Cuba, Venezuela e Nicarágua, em apoio a Massa. Ela deve estar presente também na eleição deste domingo para reforçar o respaldo à candidatura peronista.

Milei, por sua vez, é bastante crítico a Lula e próximo ao bolsonarismo. Durante a campanha, adotou um tom duro contra o petista, chamando-o de corrupto e comunista. Ele também prometeu não se reunir com o presidente brasileiro durante o mandato. Filho 03 do ex-presidente Jair Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) esteve no primeiro turno no comitê de campanha do libertário, em apoio à sua candidatura.

<b>O governo e o PT na campanha
</b>
Após as eleições primárias de 13 de agosto, o candidato e ministro da Economia Sergio Massa viajou ao Brasil onde se encontrou com Lula e com seu colega brasileiro, Fernando Haddad. Na época o peronista havia amargado um terceiro lugar na disputa e Javier Milei surgia como um surpreendente vencedor. Na viagem, Massa queria duas coisas: dinheiro e ajuda na campanha.

Além da crise inflacionária – ou em consequência dela – a Argentina vive um grave problema de falta de dólares. Segundo estimativas de consultorias privadas, as reservas líquidas do Banco Central argentino estariam negativas em mais de US$ 10 bilhões, um recorde.

Sem a moeda forte, o país não consegue importar produtos e já vive falta de alimentos como atum, palmito e abacaxi, além de remédios, insumos médicos e peças automotivas. E também não consegue pagar a sua dívida bilionária com o Fundo Monetário Internacional, contraída durante o governo de Mauricio Macri.

Obter o dinheiro foi o motivo principal que fez Massa viajar a Brasília naquele fim de agosto, mas também tirar uma foto ao lado de Lula lhe serviria de vitrine para uma Argentina que pretende ser "amiga de todos", como ele mesmo diz. Na época, diferentemente de seu presidente Alberto Fernández que por vezes saiu de mãos vazias do Brasil, Massa saiu com a promessa de financiamento das exportações do Brasil para a Argentina, por meio do Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF).

Em outubro, o <b>Estadão </b>revelou na coluna da repórter Vera Rosa, que Lula ajudou em uma operação para que o (CAF) concedesse empréstimo de US$ 1 bilhão à Argentina. Com o dinheiro, Massa conseguiu novo acordo para liberar recursos do FMI.

Durante a viagem, o jornal argentino La Nación adiantou que o PT havia prometido ao peronista dar um reforço em sua campanha por meio de uma equipe de marqueteiros. Na época, o Palácio do Planalto negou a informação por meio de sua assessoria. Porém, dias depois, a equipe indicada por Sidônio Palmeira, que liderou a campanha vitoriosa de Lula contra Jair Bolsonaro no ano passado, desembarcou em Buenos Aires. Desde então, as peças do candidato deram uma girada completa.

"Os assessores brasileiros mudaram bastante a campanha, porque até um pouco antes das eleições gerais a estratégia era de não falar no opositor. Quando chegam os brasileiros, eles dizem para fazer exatamente o contrário, expor mais o Milei, falar todo o tempo dele e mostrar tudo, expor as misérias, a família, o lado pessoal. As campanhas negativas podem ser mais sujas, mas é uma estratégia legítima da política", afirma De Angelis

<b>Por que o Brasil ganhou este destaque?
</b>
Segundo analistas, são muitos os motivos para o Brasil aparecer com tanta evidência nessas eleições."Um deles é a presença dos assessores brasileiros", aponta o cientista político Pablo Touzon. "Outro é a própria aliança que Massa tem com o Brasil. Dentro do sistema empresarial argentino, o grupo empresarial que mais apoia Massa é análogo ao que apoia Lula no Brasil, que é um grupo que se beneficia do Mercosul e suas regras atuais. E a isso se somam às declarações recentes do Milei em um tom antigoverno brasileiro."

Um dos objetivos de Lula quando retornou à presidência em 1º de janeiro era justamente retomar o Mercosul, que perdeu relevância durante o governo de Jair Bolsonaro. Desde o início do ano, o plano tem tido pouca evolução concreta. A chegada de Milei à Casa Rosada representaria mais um golpe ao bloco, que luta para aprovar um acordo de livre comércio com a União Europeia. No último debate, Milei chamou o Mercosul de "estorvo".

<b>O fator econômico
</b>
Massa tem usado as relações da Argentina com o Brasil e com a China para polarizar com Milei. O comércio entre os vizinhos é majoritariamente pautado pela agricultura e pela indústria automotiva, mas não só. De janeiro a outubro deste ano, o Brasil exportou quase US$ 15 bilhões à Argentina, uma alta de 13% em comparação com o mesmo período do ano passado, e importou mais de US$ 10 bilhões, com uma queda de 6%, muito devido à crise de dólares que vive o país vizinho.

Enquanto um defensor do libertarianismo, Milei é a favor de um Estado mínimo, inclusive nas relações internacionais. Sua proposta, caso se torne presidente, é retirar do Estado argentino o papel de regulador do comércio, deixando aos empresários e agricultores a tarefa. "Negociem com quem queiram", diz.

A política, porém, associada às falas que ligaram Luiz Inácio Lula da Silva ao comunismo, bem como a negativa de se encontrar com o petista, contribuíram para que Massa colasse em Milei, junto ao eleitorado, a ideia de que ele iria romper as relações entre os dois parceiros, de acordo com analistas.

"De forma bastante ágil, Massa soube aproveitar essa situação para mostrar no debate um Milei que, em termos de política internacional, teria uma postura que não era favorável aos interesses dos argentinos", afirma o sociólogo Carlos De Angelis.

Rompendo ou não as relações, a simples menção de que o libertário pode abalar este pilar da economia argentina, que já está em maus lençóis, provoca ansiedade em empresários, produtores e no mercado financeiro.

A proximidade de Lula com os governos peronistas é histórica. Ele e o ex-presidente Néstor Kirchner eram amigos, assim como sua esposa e atual vice-presidente Cristina Kirchner. Em Río Gallegos, cidade natal de Néstor e o reduto mais kirchnerista da Argentina, há fotos de Lula com Néstor em quase todos os locais de homenagem ao ex-presidente.

"Dizem que a relação entre Néstor e Lula não era tão fácil, tanto que Lula preferia o antecessor de Néstor Eduardo Duhalde, por causa da própria personalidade de Kirchner, mas com todo o processo de impeachment de Dilma e depois a prisão de Lula, o kirchnerismo saiu muito em defesa de Lula e nunca o abandonou. Agora que ele volta ao poder, ele devolve a gentileza, mas sem entrar em excesso, porque isso não significou emprestar dinheiro para a Argentina".

Quando venceu as eleições, Lula foi abraçado por Alberto Fernández que havia viajado ao Brasil naquele mesmo dia das eleições para felicitá-lo. O mesmo Fernández viajou ao menos seis vezes ao país desde então, mas nunca saiu com dinheiro, como queria.

<b>Milei e o bolsonarismo
</b>
Da mesma forma, a relação entre Milei e a família Bolsonaro saiu do campo político para estar no pessoal. Antes do primeiro turno, Bolsonaro gravou um vídeo explicitando apoio a Milei. No dia da eleição, Eduardo Bolsonaro viajou à Argentina, apareceu no colégio eleitoral do deputado Nahuel Sotelo e foi figura presente no bunker libertário.

"Existe uma proximidade ideológica e até pessoal dos Bolsonaros com Milei, para além do político, e por outro há o que diz o próprio Milei", afirma Carlos De Angelis. "Ele disse recentemente que não vai se reunir com Lula, sendo que, tradicionalmente, a primeira viagem do presidente eleito argentino é ao Brasil e vice-versa".

Essa proximidade também foi explorada pelos marqueteiros enviados por Lula, que viram características do eleitorado argentino que não batiam com parte da agenda do libertário. Um exemplo é a questão do porte de arma, defendido tanto por Milei quanto pelo bolsonarismo.

Segundo um levantamento do Observatório Pulsar, da Universidade de Buenos Aires, apesar de o problema da violência urbana ter crescido na Argentina, cerca de 85% da população é contra o porte de armas para qualquer pessoa.

De acordo com o levantamento, os argentinos preferem uma maior atuação do Estado na segurança pública em vez de repassar esta defesa para os cidadãos. Mais de 75% dos argentinos defendem que se deve aumentar as penas para controlar a insegurança, e mais de 70% acreditam que os militares devem atuar para combater o narcotráfico.

Logo após o acréscimo dos brasileiros à equipe do peronista, uma peça publicitária que repercutiu foi a de uma criança indo à escola com uma arma na mochila. Em um dado momento a criança retira a arma e se houve sons de tiros e gritos. A propaganda finaliza dizendo que aquela não era uma realidade na Argentina, mas "poderia ser com Milei e sua proposta de livre venda de armas."

Dias antes, Eduardo Bolsonaro foi retirado do ar no canal C5N, de uma linha editorial próxima ao peronismo, ao defender o direito ao porte de armas para legítima defesa.

Em paralelo aos ataques a Milei por sua posição no tema das armas, os marqueteiros enviados por Lula também apostaram em outras duas frentes para aumentar o medo do eleitorado argentino do libertário e, com isso, aumentar as chances de Massa. São eles o tema da democracia e dos direitos individuais e a manutenção dos serviços públicos.

Parte dos anúncios de Massa retratou Milei como uma ameaça à democracia por seus comentários relativizando a violência da ditadura argentina. Os marqueteiros também colocam em dúvida a continuidade de medidas aprovadas recentemente no país, como a legalização do aborto, adotada em 2020.

Por fim, Massa tem batido no plano do libertário de extinguir os serviços de saúde e educação públicas, defendendo que sejam privatizadas e distribuídos vouchers a aqueles que não podem pagá-las. Embora sua base eleitoral apoie a ideia, ela causa temor em outra parte que é altamente dependente do Estado, como acontece no interior e nas cidades da Grande Buenos Aires.

Ainda de acordo com o levantamento do observatório Pulsar, que foi realizado antes das primárias, 60% dos argentinos estão mais a favor da iniciativa privada que do setor público. No entanto, 80% acreditam que saúde e educação são áreas que devem ser poupadas.

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