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Como O Avesso da Pele e Outono de Carne Estranha, veja outros livros alvos de censura

Dois casos recentes de tentativas de censura e boicote a obras literárias reacenderam o debate sobre um movimento que vem crescendo no Brasil nos últimos anos. Vencedor do Prêmio Jabuti de melhor romance em 2021, o livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, mobilizou discussões nas redes sociais no fim de semana, após ter sido criticado pela diretora de uma escola estadual em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul.

Em um vídeo, a diretora condena o livro pelo que considera "vocabulários de tão baixo nível" e questiona a decisão do governo federal de incluir tal material no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) para alunos do Ensino Médio. Falando ao Estadão, ela negou que tenha tentado censurar a obra.

Na segunda-feira, 4, a Secretaria de Estado da Educação do Paraná emitiu um ofício determinando que o livro seja recolhido de escolas em Curitiba, sob a justificativa de "análise pedagógica". "Há um recrudescimento de um discurso conservador, uma visão que se recusa a encarar as questões cruciais da sociedade", disse Tenório ao Estadão. O Avesso da Pele aborda temas como racismo estrutural, violência policial e deficiências do sistema de ensino.

Enquanto isso, uma lentidão no processo do Prêmio Sesc de Literatura, um dos mais importantes do País, ecoa teor semelhante: nos bastidores, conforme apurado pelo <b>Estadão</b>, fala-se em tentativa de censura prévia, boicote e demissões desde que Airton Souza, escritor e professor de história, leu um trecho de seu romance premiado, <i>Outono de Carne Estranha</i>, durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) em novembro. A obra conta a história de um relacionamento homoafetivo, e teria causado desconforto em dirigentes do Departamento Nacional do Sesc, que estavam na plateia. Foi iniciado um estudo para reformulação do edital, para conferir aos organizadores mais controle do que seria premiado – evitando que determinados títulos chegassem à final.

Ambos casos fazem parte de um movimento de proibição que vem crescendo nos últimos anos no Brasil, sobretudo em escolas, por vezes com respaldo da esfera pública. Em novembro de 2023, por exemplo, o governo de Santa Catarina ordenou que nove livros fossem retirados de escolas públicas – todos eles títulos estrangeiros, em sua maioria obras de suspense e terror. Em 2020, o governo de Rondônia empenhou uma tentativa de recolher diversos clássicos da literatura brasileira de escolas, com a alegação de "conteúdos inadequados às crianças e adolescentes", mas desistiu do procedimento.

Relembre outros livros que foram alvo de boicote e censura no País:

<b>Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios</b>

Publicado em 2005, o livro do jornalista e roteirista Marçal Aquino retrata o triângulo amoroso entre um fotógrafo, uma misteriosa ex-prostituta e seu marido, um pastor evangélico. Em abril do ano passado, a obra foi retirada da lista de leituras obrigatórias do vestibular de medicina da Universidade Rio Verde (UniRV), de Goiás, após o deputado federal Gustavo Gayer (PL) publicar um vídeo acusando conteúdo "pornográfico". "A Coordenação do Vestibular, ao tomar ciência do conteúdo do livro e da polêmica gerada, decidiu pela exclusão imediata da referida obra da lista literária indicada para o vestibular", afirmou a instituição de ensino na época.

<b>Vingadores: Cruzada das Crianças</b>

Caso emblemático aconteceu em 2019, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Na ocasião, o então prefeito Marcelo Crivella determinou que a história em quadrinhos de Allan Heinberg e Jim Cheung fosse retirada do evento, por conter uma cena de beijo gay. Em vídeo, ele fornecia a justificativa de que era preciso proteger as crianças de "conteúdo impróprio". No dia seguinte, fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública foram vaiados enquanto percorriam vários estandes em busca da HQ, mas não encontraram nenhum volume: o produto havia esgotado em menos de 40 minutos na Bienal. O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a decisão tomada pelo Tribunal do Rio a pedido de Crivella.

<b>O Grande e Maravilhoso Livro das Famílias</b>

No mesmo ano, o livro de Mary Hoffman e Ros Asquith, indicado por uma rede de ensino para os alunos do 1º ano do Fundamental, causou desconforto em alguns pais e revolta contra uma de suas unidades, em Santos. Então com quase 10 mil exemplares vendidos para escolas particulares e mais de 93 mil cópias para escolas públicas, a obra apresenta a diversidade dos formatos de famílias, inclusive homoafetivas, e como elas se relacionam com questões cotidianas importantes. Segundo a escola, que repudiou ameaças feitas pelos pais, estes argumentavam que o assunto poderia incentivar a sexualização precoce de crianças e doutrinação vinda de professores.

<b>Meninos Sem Pátria</b>

Em 2018, a obra de Luiz Puntel foi retirada da lista de leitura do 6º ano do Colégio Santo Agostinho, no Rio, que teria cedido à pressão dos pais. Eles acusaram a instituição de "doutrinar as crianças com ideologia comunista", alegando que o texto "critica governos militares enaltecendo a ótica de esquerda". O livro, lançado em 1981 dentro da mítica Coleção Vaga-Lume, é ambientado na ditadura militar e fala sobre uma família que precisa viver no exílio depois que a redação do jornal em que o pai trabalha é invadida. Na época, o livro já estava em sua 23ª edição.

<b>A Marca de Uma Lágrima</b>

Pedro Bandeira, autor de célebres títulos para o público infanto-juvenil, foi alvo da insatisfação de pais algumas vezes, conforme comentou em entrevista ao <b>Estadão</b>. Um caso marcante aconteceu em 2016, quando pais de alunos do sétimo ano do Colégio Santa Maria, em Belo Horizonte, se incomodaram com <i>A Marca de Uma Lágrima</i>, título de Bandeira recomendado pela escola. Eles criaram um abaixo-assinado para pressionar a instituição de ensino, alegando que o conteúdo supostamente erótico e inapropriado do livro poderia afetar comportamentos dos alunos da escola católica. O livro já havia sido publicado há mais de 30 anos quando a polêmica veio à tona. Conta a história de uma adolescente meio solitária e pouco informada, lidando com a puberdade e sua paixão por um primo, para quem acaba endereçando cartas reveladoras.

<b>Obscenidades para uma Dona de Casa, em Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século</b>

Em 2010, o livro <i>Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século</i>, organizado por Italo Moriconi, foi censurado por incluir O<i>bscenidades para uma Dona de Casa</i>, conto de Ignácio Loyola Brandão que narra a história de uma mulher casada que recebe cartas anônimas. O Tribunal de Justiça de São Paulo vetou a distribuição do livro na rede pública de ensino, após ter determinado o recolhimento dos exemplares de escolas, com a justificativa de haver "elevado conteúdo sexual, com descrições de atos obscenos, erotismo e referências a incestos". As reclamações inicialmente vieram de pais de alunos do último ano do ensino médio, que consideraram os trechos inadequados e recorreram ao Instituto Nacional de Defesa do Consumidor (Inadec), então presidido pelo deputado federal Celso Russomano.

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