Estadão

Como o Congresso Nacional capturou o orçamento

Numa manhã ensolarada de fevereiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro e ministros assistiam ao hasteamento da bandeira, no jardim do Palácio da Alvorada. Era uma terça-feira com poucas nuvens e prenúncio de mau tempo político. O Congresso havia aprovado o Orçamento Geral da União daquele ano com R$ 30,1 bilhões em emendas de relator, mecanismo de distribuição de verbas para redutos de parlamentares. Foi então que a transmissão oficial ao vivo captou a fúria do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno. "Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente. Foda-se!", esbravejou o general.

Em 2018, durante a campanha de Bolsonaro, Heleno já havia cantarolado uma música na qual substituía a palavra "ladrão" por "Centrão", ao se referir ao grupo de partidos fisiológicos, de longeva atuação na política. Eleito, Bolsonaro continuou dizendo que rejeitaria negociações no varejo, em troca de votos no Congresso. Àquela altura, no entanto, o presidente já tinha dado entrada nos papéis do "casamento" com o Centrão, bloco que historicamente adere ao governo para capturar o Orçamento.

Enquanto a frase de Heleno animava as redes bolsonaristas, o então ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, construía o que seria a base de sustentação do governo, mantida à custa de verbas públicas. Contava, para tanto, com o aval do ministro da Economia, Paulo Guedes.

O dinheiro do orçamento secreto – esquema de barganha política revelado pelo <b>Estadão</b> – teve corte, mas, no ano passado, o Congresso bateu recorde em emendas parlamentares, verbas previstas em lei e de destinação conhecida, executando R$ 35 bilhões. Foi uma conquista do Centrão, que sonhava com um controle mais amplo dos recursos. Com o apoio do bloco, Bolsonaro começou a movimentar sua campanha à reeleição.

<b>COALIZÃO</b>

O manejo das verbas orçamentárias é uma "ferramenta" do presidencialismo de coalizão para construir base de apoio na Câmara e no Senado. Mesmo sem a obrigatoriedade de o governo executar as indicações feitas por parlamentares – já que, no modelo brasileiro, o Orçamento é autorizativo -, a prática do toma lá, dá cá está por trás dessa relação fisiológica e há tempos o País enfrenta escândalos de desvio de recursos, como o dos anões do Orçamento (1993), o das máfias dos vampiros (2004) e o dos sanguessugas (2006).

A captura do Orçamento por um grupo de políticos começou a ser ampliada a partir de 2014, quando Henrique Eduardo Alves (MDB-RN) presidia a Câmara. Naquele ano, o debate da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que tornaria obrigatória a execução das emendas parlamentares individuais amadureceu. A PEC foi aprovada na Câmara sob o comando de Eduardo Cunha (MDB-RJ), em 2015, tornando essas emendas impositivas. Cunha, mais tarde, seria cassado.

Em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, com Rodrigo Maia (então no DEM-RJ) à frente da Câmara e Davi Alcolumbre (DEM-AP) no Senado, mais duas emendas à Constituição ampliaram esse poder. A primeira também tornou impositivas as emendas de bancadas estaduais, apresentadas por parlamentares de uma mesma unidade da Federação. A segunda os desvencilhou da supervisão do governo ao permitir que as emendas individuais pudessem ser transferidas diretamente a fundos municipais. Nessa transferência especial, conhecida como "Pix orçamentário", não havia necessidade de convênios.

Com o argumento da independência, a divisão proporcional de recursos – imune a contingenciamentos e desburocratizada – impediria o Executivo de barganhar apoio em troca da liberação de recursos. Na Emenda Constitucional 100, o Congresso estabeleceu que a execução desses repasses deveria observar "critérios objetivos e imparciais".

<b>ORIGEM</b>

Depois de fincar a bandeira no Orçamento, porém, o Congresso dobrou a aposta. O Centrão avançou sobre os recursos, aproveitando a fragilidade da articulação do governo e com Bolsonaro ameaçado por pedidos de impeachment.

O Congresso aprovou a criação do identificador de resultado primário (RP) n.º 9, para emendas de relator do Orçamento, em outubro de 2019. A ideia era garantir que o governo executasse os valores conforme indicação do Congresso, na figura do relator-geral. O Palácio do Planalto vetou a criação do RP9 ao sancionar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, mas voltou atrás após acordo político costurado pelo general Ramos.

À época, o governo preparava um combo de PECs: a Emergencial, a do Pacto Federativo e a dos Fundos Públicos, apresentadas em novembro. O Planalto, repleto de ministros e assessores fardados, também buscava aprovar a reforma da Previdência dos militares. Faltava, ainda, o Orçamento de 2020. Para aprovar as propostas, o Congresso queria uma fatia maior de investimentos.

Uma reunião com políticos do Centrão, na Casa Civil, ajudou a selar o acordo. Além de Ramos e da equipe econômica, estavam presentes os líderes do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), e no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO). O governo encaminhou, então, novo projeto para alterar a LDO, estabelecendo as emendas de relator. Desta vez, barrou a obrigação de aceitar as indicações de beneficiários e as prioridades de pagamentos. Com o veto, mantido em sessão do Congresso, o relator-geral poderia remanejar bilhões do Orçamento, mas o Executivo não tinha obrigação de executar os repasses.

Sem uma regulamentação definida, as emendas de relator viraram um monstrengo. Como o veto desobrigou o governo de acatar as indicações do Legislativo, o Planalto teve a chance de liberar recursos apenas para os aliados. Surgiu aí o orçamento secreto.

<b>ELEIÇÃO</b>

O esquema aumentou o poder dos presidentes da Câmara e do Senado e dos principais líderes, além do relator-geral do Orçamento. No ano passado, a caneta estava com o deputado Domingos Neto (PSD-CE). Um total de R$ 140 milhões foi reservado pelo governo para o município de Tauá (CE), onde a mãe do deputado, Patrícia Aguiar (PSD), se elegeu prefeita. O deputado Arthur Lira (AL), então líder do PP, enviou mais de R$ 100 milhões do orçamento secreto para contemplar aliados com obras e máquinas. Mas o maior benefício de Lira está ligado aos recursos despejados pelo governo para elegê-lo presidente da Câmara, em fevereiro deste ano. A poucos dias das eleições no Congresso, o <b>Estadão</b> revelou que o governo liberou R$ 3 bilhões, a pedido de 285 deputados e senadores, o que evidenciou a negociação para eleger Lira. Uma planilha secreta registrava nomes, beneficiários, valores e situação do repasse.

<b> TRATORAÇO </b>

Ao longo do ano, o jornal mostrou a existência de dezenas de convênios para compra de tratores e equipamentos agrícolas com valores acima dos praticados pelo mercado. A Controladoria-Geral da União e o Tribunal de Contas da União apuraram, até agora, risco de sobrepreço que atinge mais de R$ 150 milhões. O "tratoraço" também irrigou empresas ligadas a políticos. Além disso, parlamentares direcionaram repasses para Estados longe daqueles onde foram eleitos. Dos R$ 3 bilhões liberados pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, somente 4% foram para opositores de Bolsonaro.

Apesar de o governo dizer que emendas de relator são prerrogativa do Congresso, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, indicou R$ 1,4 milhão para a obra de um mirante turístico vizinho a um terreno onde ele pretende construir um condomínio privado, em Monte das Gameleiras (RN). Já o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, enviou verbas do orçamento secreto para o Piauí, Estado onde tem família e propriedades. Os dois negam irregularidades nas transações.

<b> NEGÓCIO </b>

Para a procuradora de Contas do Estado de São Paulo, Elida Graziane Pinto, as emendas de relator "implodem" o processo legislativo orçamentário. "A participação da minoria e dos parlamentares da oposição é esvaziada. É como se a gente questionasse a possibilidade de haver paridade de armas, de haver equidade na distribuição dos recursos", disse a procuradora.

Na avaliação do cientista político Murillo de Aragão, com a modalidade do orçamento secreto o parlamentar "passou a gerir uma espécie de unidade de negócio, que termina por favorecer a reeleição de quem está no exercício do mandato".

O Planalto e a cúpula do Legislativo sempre alegaram não haver nada secreto nem ilegal nesses repasses. No último dia 5, porém, liminar da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a execução das emendas de relator-geral e determinou que houvesse transparência na destinação do dinheiro. No julgamento do plenário virtual, sete ministros acompanharam a relatora.

Para o ministro aposentado do Supremo Celso de Mello, a decisão de Rosa não representa interferência no Legislativo. "A ocorrência de desvios jurídico-constitucionais nos quais incida o Congresso Nacional não pode nem deve ser tolerada", disse ao <b>Estadão</b> o ex-decano da Corte.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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