Um dos principais grupos cênicos do País, a companhia brasileira de teatro (grafado assim mesmo, com letras minúsculas) gosta de trabalhar com base no desconhecido – não há um planejamento detalhado do que será a próxima peça, mas um mergulho no incerto. Assim, o produto final é uma espécie de um material condensado de tudo o que foi testado.
Esse processo dinâmico tornou-se mais evidente no mais recente trabalho da companhia, projeto brasil (também escrito com minúsculas), que estreia nesta quinta-feira, 16, no Sesc Belenzinho. A peça nasceu de uma excursão feita pelo grupo entre 2013 e 2014 em cinco capitais. Dessas viagens, com as trocas de informações com pessoas diversas e com as reflexões artísticas que o percurso gerou, foi montado um mosaico criativo. O resultado foi dividido em cenas que, unidas, formam o projeto Brasil.
“A peça é construída em uma dimensão relacional muito forte”, conta o diretor Marcio Abreu. “Há um conjunto de performances, algumas com certa autonomia, que forma a dramaturgia da montagem. Por isso, a importância de experimentá-las com o público. Mas a estrutura do espetáculo é muito precisa e determinante. Percebemos isso durante a temporada no Rio. Assim, não há mudanças estruturais, mas uma percepção sensível de como chegar ao espectador. Tem sido assim em todas as cidades que passamos no Brasil e também na Alemanha, de onde acabamos de chegar.”
Para se entender melhor, é preciso fazer uma descrição básica do espetáculo: em um palco redondo, encontram-se vários microfones, como se estivessem preparados para um pronunciamento. Mas necessariamente não serão ouvidas falas convencionais. Sim, há momentos de texto propriamente dito, inspirados em discursos reais, como a ex-ministra da Justiça da França, Christiane Taubira, ou o ex-presidente do Uruguai, Jose Mujica, bem como criações da própria companhia, além de cenas que buscam outras possibilidades de expressão. Em pauta, temas como política, igualdade, consumo exacerbado, economia de mercado, ética, o caráter descartável da sociedade atual, a ânsia por compreender e se comunicar. Outras questões inspiraram o trabalho do grupo, como o papel do ator, do teatro e da arte. Os figurinos, também em preto, remetem a um “fim de festa”, como define Abreu.
“Lidamos com referências do real, mas não no sentido de reprodução da realidade em cena”, observa o encenador. “Não buscamos fazer um retrato do País. Tampouco é uma peça sobre o Brasil. É, na verdade, uma peça a partir do Brasil. E essa consciência pautou todo o trabalho. Criar algo a partir de e não sobre. Dessa maneira, a dimensão do desconhecido se afirma no campo da arte. E é para lá que olhamos.”
À frente da companhia brasileira de teatro, Marcio Abreu trabalha sempre apoiado em um paradoxo: ao mesmo tempo em que busca uma técnica precisa, elaborada, por outro aceita o imponderável que nasce do relacionamento com o outro. Assim, ao reunir palavra, performance, música e teatro, projeto brasil revela-se um espetáculo mais sensorial que narrativo, permitindo que os atores sejam afetados “pelos encontros com outros criadores brasileiros e com o público teatral, pela vivência espontânea, pelos muitos materiais, pensamentos e ações produzidos nesse trajeto”.
“Iniciamos a pesquisa para esse trabalho no final de 2012”, conta Abreu. “Naquele momento, eu sentia necessidade de olhar para o País. Ter tempo para ler ou reler nossos clássicos, aproveitar nossas viagens de circulação de peças do repertório para ficar mais um pouco em cada cidade, conversar com as pessoas, se deixar atravessar pelas histórias e experiências de cada lugar, enfim… E, logo depois, em 2013, vieram as manifestações de junho até chegarmos hoje a essa calamidade política. Não fazíamos ideia que seríamos atravessados por esse turbilhão funesto de conservadorismo, abuso de poder e mentiras públicas tomadas como verdade.”
Tamanho turbilhão, inesperado, influenciou decisivamente os passos do grupo em seu processo criativo. Abreu acredita que a realidade influenciou o processo, ainda que a companhia não tivesse noção disso naquele momento. “Hoje, a peça reverbera tudo isso, mas de maneira muito singular e no campo da arte. Olhamos para o desconhecido. Buscamos inventar novas possibilidades de vida. Algo ruiu. Estamos caminhando sobre os destroços. Não podemos retroceder e a arte é o lugar de maior potência nesse momento.”
Com base nesse acúmulo de experiências, Abreu criou a dramaturgia ao lado dos atores que estão em cena: Giovana Soar, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan. Ainda no palco, o músico Felipe Storino. Esse trabalho conjunto apontou para novos rumos, de recriação de uma dramaturgia já muito particular, desde os ensaios até a montagem, afirmando-se em um novo desafio de linguagem.
Reforçou também a convicção de Marcio Abreu em transformar o teatro em um local de viva convivência entre público e artistas. “A dimensão de convivência é muito importante no meu trabalho. Tentar construir dramaturgias que revelem esse aspecto do teatro, que é uma arte pública, com pessoas umas diante das outras. Em projeto brasil, há uma radicalização dessa perspectiva se comparo com trabalhos anteriores. E as respostas têm sido fortes, seja na afirmação ou na recusa. Sinto que as pessoas, cada vez mais, querem fazer parte e não apenas estar de fora. Esse tempo acabou. É hora de ações inclusivas, não exclusivas ou excludentes.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.