Um ator e uma atriz estão prestes a ensaiar uma peça. Ambos já tinham tido contato com o texto, cujo enredo apresenta dois personagens: um homem e uma mulher. Após receber a ordem do diretor para que começassem o trabalho, eles se questionam: “Quem interpreta quem?”. O encenador responde: “Ora, é natural!”.
A cena integra o espetáculo Maria Que Virou Jonas ou A Força da Imaginação, que questiona justamente essa naturalidade observada pelo diretor e presente no pensamento de grande parte das sociedades atuais. A montagem da Companhia Livre tem direção assinada por Cibele Forjaz e estreia nesta quinta-feira, 18, no Sesc Belenzinho.
Com dramaturgia de Cássio Pires, o texto parte de Da Força da Imaginação, um excerto de Os Ensaios, do escritor e filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592). O conto mostra a história de Marie, que nasce e é criada como menina. Certo dia, ela se depara com um buraco e, em vez de contorná-lo, opta por saltar sobre ele. O movimento brusco que Marie faz ao abrir as pernas causa uma ruptura em seu corpo, revelando um pênis que, até então, estava guardado em suas entranhas. Após o processo, Marie passa a se chamar Germain.
A ideia de se montar o espetáculo partiu da atriz Lúcia Romano, que divide o palco com Edgar Castro. “Gostei da história porque ela questiona o que aceitamos como natural, um conceito que vai mudando no decorrer das épocas”, diz Lúcia. “Existe, hoje, uma norma que tenta nos colocar um modelo binário (homem e mulher) que não dá conta das múltiplas possibilidades que existem.” Para ela, o pensamento sobre a sexualidade atual é um passo que a humanidade deu para trás. “A ideia de que existe uma diferença fundamental nos corpos permite que as pessoas cometam barbaridades.”
A peça utiliza o recurso do metateatro, isto é, um espetáculo é montado dentro do próprio espetáculo. Os atores, travestis, são convidados a realizar a montagem sobre um casal heterossexual que vivencia mudanças depois que a mulher, assim como Marie, passa por uma transformação sexual. A história de Montaigne é, então, trazida para o presente, retratando a reação das pessoas na rua e abordando o mundo da vida noturna e da prostituição.
“A gente imagina que uma mudança de sexo é um tabu, mas Marie foi socialmente aceita como Germain no século 16”, recorda Cibele. Para a diretora, a importância do buraco dá caráter teatral à história. “É a própria metáfora da transformação. Passar uma fronteira, um limite, e se transformar. Para Montaigne é filosofia, para nós, é arte.”
O público é tocado pela discussão de gênero antes mesmo de a peça começar. Ao entregar o ingresso na porta de entrada, cada espectador tira uma ficha de dentro de uma urna. As cartas contêm as informações “Ela” ou “Ele”. O resultado do sorteio define a distribuição da plateia, que ganha iluminação verde de um lado e vermelha de outro: é um convite para ver o espetáculo por um outro ponto de vista.
A pergunta da cena descrita no início desta reportagem não é retórica, e é respondida pelo público. Ou pela sorte. “Entendemos que a plateia tende sempre a querer ver o ator interpretando a mulher e a atriz interpretando o homem”, explica Cibele. “Em algumas apresentações, vamos sortear cartas para dar chance ao acaso. É importante que os gêneros transitem, que a peça não fique num formato só”, acrescenta.
Para o ator Edgar Castro, a troca de personagens é rica tanto para o elenco, quanto para o público. “Quando invertemos o jogo, parece que fazemos uma história diferente”, conta. “Apesar dos pilares comuns dos personagens, a Lúcia não tem as mesmas reações que eu”, destaca, frisando que as mudanças sugerem outras configurações para o casal. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.