Há momentos em que a música parece não querer chegar aos nossos ouvidos; prefere desviar nossa atenção para as palavras, no sentido concreto, como em Coming Together, peça do norte-americano Frederic Rzewski a propósito da revolta dos presos de Attica, no Estado de Nova York, em 1971, reprimida com um massacre (e morte de 44 presos) ordenado pelo então governador Rockefeller. Ou a fusão é implícita, como nas duas peças extraordinárias do brasileiro Alexandre Lunsqui.
Na fria manhã do sábado, dia 24, o amplo átrio do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, foi “ocupado” pelos estudantes da Orquestra de Câmara da USP, a OCAM. Durante hora e meia, o público mergulhou em ótima música contemporânea (apesar do excesso de ruídos ao redor).
O concerto concebido por seu maestro titular Gil Jardim queria – e funcionou – como intervenção na exposição Os Muitos e o Um, reunindo a coleção Andrea e José Olympio Pereira de arte brasileira contemporânea, aberta no dia 4 deste mês e que irá até 21 de outubro. Inegável a atual tendência robusta de sinergia entre música e artes visuais. Na verdade, todas as artes buscam hoje explodir limites.
Os melhores momentos ficaram com as criações recentes de Alexandre Lunsqui. Aos 46 anos, ele já passou do momento da autoafirmação iconoclasta. Exibe um admirável e libertário gosto pelo lúdico, pelo ato de brincar com os sons. No sexteto Carreteis II, de 2015, parte da série de telas de Iberê Camargo com este título geral. Já Fibers, Yarn and Wire, para orquestra, teve – pasmem – sua primeira execução no Brasil neste concerto. E capenga por causa da impossibilidade de um piano de concerto, substituído por um piano elétrico, único corpo estranho, porque amplificado, em relação à orquestra (acústica, claro).
Mesmo assim, deu para sacar que esta é uma das mais instigantes e bem construídas peças sinfônicas recentes que já ouvi. Ela foi encomenda da Filarmônica de Nova York, em sua série de concertos Contact! New Music, em 2011. No domingo, 25, a execução deve ter sido melhor, com o piano adequado, no Auditório Ibirapuera.
Igualmente atraente foi A Menina que Virou Chuva, de Valéria Bonafé. Aos 32 anos, ela mostra talento ao lidar com um tema difícil, a morte. Ela mesma se faz a pergunta: “Como soa a morte?” – e tenta responder com música complexa e emocionante.
O maior impacto sobre o público deve ter sido de Coming Together, de Rzewski. Pelo tema, que rendeu outras criações memoráveis como Remember Rockefeller at Attica, de Charlie Mingus. E pela participação do ator Marat Descartes narrando parte do diário de um preso. Neste caso, o minimalismo de Rzewski funciona como pano de fundo inexorável com cheiro de letalidade, embaixo de frases como “eu leio muito, me exercito, converso com guardas e presos, pressentindo a direção inevitável da minha vida”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.