Por que tão poucos letristas procuram maneiras próprias de verbalizar o amor? É evidente que dentro do panorama da cultura brasileira existe um número muito maior de músicos criativos do que de letristas originais. A expressão verbal neste campo parece pagar o preço imposto à criação de textos em outras áreas da Comunicação Social, como as da Publicidade e do Jornalismo, pela crise da cultura humanística, desencadeada, no Brasil, desde a implantação de um regime político autoritário em 1964. Por isto, encanta quem preza a Música Popular Brasileira assistir o surgimento de um letrista como Renato Godá. Para os que não o conhecem ainda, é melhor observar atentamente o que ele tem conseguido fazer com as palavras, por exemplo, nestes trechos de letras criadas para acompanhar as suas músicas estranhamente belas:
Demodèe: Na lua cheia/ da madrugada/ os cães uivavam nos portões/ Eu caminhava/ ou flutuava, não sei/ apaixonado e sem pudor algum/ depois de um longo beijo/ que começou roubado/ E atravessou as horas, sob um céu estrelado.
Em suas mãos: Eu mudaria o mundo por você/ Silenciaria o carnaval/ Só p´ra falar de amor em seu ouvido/ Só p´ra ganhar um beijo, no final/ Buscaria estrelas em galáxias distantes/ Enfrentaria homens e dragões/ P´ra te fazer feliz, por um instante/ Entregaria o tempo em suas mãos.
Eu sei: Eu sei/ que o homem-bala voa/ que o trapezista voa/ e o tempo, ainda é pior/ Porém, posso esquecer das horas,/ abusar da demora,/ p´ra ficar com você/ Eu sei/ a vinda inteira é curta,/ passado não tem curva,/ e o tempo, ainda é pior/ Por fim, se o Super-Homem voa,/ se a bailarina voa,/ e o tempo, ainda é pior/ Eu vou,/ nesse compasso lento,/ em meio ao contratempo,/ sem pressa de entender.
Flores novas: Estou sentado no topo do mundo/ No fundo de um precipício fundo/ Na motocicleta do Globo da Morte/ Fraco, às vezes, e, às vezes, forte/ Eu quis inventar flores novas/ num poema apaixonado/ Sacrificar minhas glórias/ minhas dores, meu passado./ A minha alma está tão gasta/ Acorrentada a tanta imagem/ Numa redoma, num grande frasco/ cheirando a perfume falso.
Kamikaze: O nosso amor é fogo/ Sei que pode ser fatal/ na língua afiada/ o fio de um punhal(…)/ E tudo tem um quê de requintado e de vulgar/ de fogos de artifícios, explodindo na madrugada/ de lágrimas, sorrisos e mergulhos kamikazes/ nas ondas de energia que arrepiam pêlos/ Os corpos enlaçados/ na cambraia revirada.
Outro cigarro: Quando chega a madrugada/ as prostitutas envelhecem/ os vagabundos falam com a solidão/ boêmios bebem no balcão/ os marinheiros jogam cartas/ as enfermeiras dão plantão nos hospitais/ jovens amantes dormem nus/ a gata grita o seu cio/ bandidos dormem nas prisões/ os jornais chegam às bancas/ os carros avançam os sinais./ Eu acendo outro cigarro/ e sonho com meu amor.
Você não é um anjo: Sei que você não é um anjo/ com esse sorriso trágico/ com esse jeito prático/ Não com esse discurso cáustico/ cheio de sentidos dúbios/ e com seu humor cruel (…)/ Mas, no fundo, só você me faz feliz/ com seus argumentos mágicos/ com esse requinte erótico/ com seu charme hipnótico/ com esse savior-faire
Bom partido: Não faço cerimônia/ Não sou um bom partido/ Tendo para os vícios/ Posso causar desgosto/ Sou um pervertido/ Livre leve e solto/ Um vagabundo astuto/ Um vira-lata escroto/ Mas você pode se divertir/ Eu não tenho regra/ Não tenho destino/ Vivo entre profanos/ E anjos decaídos/ Sou um cão devasso/ Mundano e explosivo/ Um pecador convicto/ Um anti-herói vendido/ Mas você pode se divertir.
Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP