Uma crença animista traduzida em folia cromática caracteriza a maior parte das 30 pinturas da mostra retrospectiva do pintor e ceramista Antonio Poteiro, aberta para visitação até 4 de setembro no Centro Cultural Correios São Paulo. A exposição, que tem como curador o crítico Enock Sacramento, recentemente premiado pela Associação Brasileira dos Críticos de Arte, reúne ainda cinco bons exemplos da cerâmica do artista de origem portuguesa, que chegou ao Brasil criança e se estabeleceu em Goiânia, tendo participado de duas bienais de São Paulo (1981 e 1991) e algumas mostras internacionais.
Poteiro (1925-2010), nascido numa aldeia de Braga, Portugal, fazia cerâmica utilitária antes de conhecer o pintor Siron Franco, que o incentivou a dedicar parte de seu tempo à pintura. Inicialmente classificado como naïf, Poteiro logo seria reconhecido pelos críticos como um pintor de rara inteligência visual, como José Antonio da Silva (1909-1996). Dono de um repertório narrativo muito particular, Poteiro cruza, de forma inaudita, cenas religiosas do cristianismo com mitos indígenas e figuras do folclore.
A mostra foi organizada por Sacramento de forma cronológica, agrupando desde as primeiras pinturas de Poteiro, feitas nos anos 1970, até as últimas obras, em que o conteúdo narrativo já não importa tanto como os problemas formais que o pintor decidiu enfrentar no crepúsculo de sua existência. Franciscano, despojado – sempre descalço e com uma barba de ermitão -, ele passou uma temporada entre os índios, assimilando as lendas dos primeiros habitantes do País.
Seu mundo é absolutamente simétrico, organizado para traçar uma correspondência entre céu e terra, como na tela chagalliana O Casamento no Céu (1998), em que o casal, num carro de bois que desafia a gravidade, parece reencenar a cena bíblica de Elias subindo ao céu numa carruagem de fogo. A reinterpretação dos textos das Escrituras por Poteiro vai da ingênua representação do nascimento de Jesus, uma pequena tela de 1975, a uma Ceia no Inferno (1989), em que Antonio Poteiro agrupa os donos do dinheiro ao lado de fornicadores e hedonistas dançarinos.
“O espectro temático de Poteiro na pintura é mais diversificado que na cerâmica”, observa o curador, apontando para telas que representam os bichos do Pantanal, as cavalhadas e uma cena carnavalesca (Alegoria, 2003) que pode ser vista como uma pintura de caráter religioso, visto que as roupas das sambistas parecem asas de anjo. “Em Poteiro, sagrado e profano andam juntos”, diz Sacramento, referindo-se também às pinturas anímicas em que não existe distinção entre mundo físico e espiritual, a exemplo das culturas indígenas ancestrais.
Poteiro, que chegou ao Brasil com um ano, viajou muito, vivendo em várias cidades, de Araguari e Uberlândia, em Minas, a Nerópolis e Goiânia, tendo exercido várias profissões, entre elas a de pedreiro, cozinheiro e garçom. Não foi, portanto, o pintor ingênuo de um mundo idealizado, mas um artista que buscou, por meio de sua figuração rudimentar, representar o real como um racionalista. Sua “ceia no inferno” é um exemplo do sarcasmo de Poteiro. É uma obra ácida de temática social que não poupa os poderosos.
Há na obra de Poteiro características formais que expressam a sabedoria de um artista sintonizado com a natureza, segundo Sacramento. “Ele passou da religião para o mundo natural e, depois, para a crítica social, e todas essas etapas estão reunidas aqui nesta pequena mostra”, diz o curador, que prepara uma retrospectiva maior, O Colorista do Brasil, a ser inaugurada em agosto, no Museu de Arte Contemporânea de Goiânia.
Entre os elementos formais que identificam a pintura de Poteiro estão, além da simetria, a circularidade e a sugestão cinética reforçada pela repetição serialista – uma característica presente tanto entre os novos realistas franceses dos anos 1960 como na obra de Bispo do Rosário. Dois exemplos desse serialismo se destacam na mostra, as telas A Pavãozada (1999) e Os Papagaios (2007), em que as figuras dos animais, repetidas, fazem surgir uma nova figura, como na obra de Escher.
Sobre a circularidade, o exemplo mais vivo é o da tela Ciranda nas Estrelas (2006), em que as figuras estão atreladas a uma roda sem começo nem fim, ciclo espiral de nascimento e morte representado desde a arte megalítica e adotado por Poteiro. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.