A mudança de endereço dos traficantes e usuários de drogas da Luz para a Praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo, inverteu o cotidiano das duas regiões, separadas por menos de um quilômetro. Quem vive perto do novo local de comércio de drogas relata alta de roubos e furtos. Até para pedir pizza eles relatam dificuldades, pois entregadores evitam a área por medo de violência.
Já os moradores do entorno da antiga Cracolândia contam que conseguem dormir mais sem o barulho das brigas dos dependentes químicos, passeiam e até respiram melhor com o fim do constante cheiro de drogas.
Na noite de segunda-feira, 10, moradores dos prédios próximos à Praça Júlio Prestes aproveitaram o início da noite para levar as crianças para brincar no espaço que antes era ocupado pelas barracas do tráfico. Eram 19h40 quando grupos caminhavam, faziam exercícios leves ou andavam de bicicleta. Quem fica em casa descreve a volta de hábitos simples, como abrir as janelas.
"Tenho a liberdade de sair na sacada do apartamento sem presenciar a venda e o consumo de drogas", conta a farmacêutica Luciana Lanzillo, de 47 anos. Antes, com a presença do "fluxo" (grande concentração de usuários e traficantes), abrir a janela significava ouvir xingamentos e correr o risco de levar uma pedrada, afirma a técnica de Enfermagem Luciana Barreto, de 32 anos, que vive na rua Dino Bueno há cinco anos.
O DJ Rodrigo Rocha, de 41 anos, conta que não precisa mais levar o filho de 11 anos para a Escola Estadual João Kopke, na Alameda Cleveland, a uma quadra de sua casa. Agora, sem o fluxo, o filho de 11 anos vai e volta sozinho ou com os colegas. Ana Mattos, que vive em um prédio em frente à praça há 18 anos, afirma que está dormindo melhor, entre sete e oito horas por noite. "Voltei a dormir a noite toda, sem ouvir brigas, palavrões, gritos, gargalhadas e música alta", diz a moradora do quarto andar.
A saída do tráfico das ruas Cleveland, Dino Bueno e Helvétia e na praça Júlio Prestes, coração da Cracolândia, foi motivada por uma ordem, em meados de março, da facção criminosa que comanda o tráfico no centro da cidade. Foi uma saída silenciosa ao longo do final de semana.
Comerciantes estão mais cautelosos e ainda evitam comemorar. Alertam também que a compra e venda de drogas continua, mas em menor escala. Um dos locais citados é a Avenida Duque de Caxias. "Eles estão espalhados, mas a gente ainda vê o pessoal usando drogas nas ruas, de dia", afirma o atendente de uma lanchonete na Rua Helvétia. Ali, eles compram quase sempre cigarro e cachaça.
No final da tarde desta quarta-feira, 13, o grande fluxo de trabalhadores e estudantes trazia movimento às ruas Cleveland e Alameda Nothmann, principalmente nas proximidades da Estação da Luz, entroncamento de duas linhas do Metrô (1-Azul e 4-Amarela) e de outras cinco da CPTM. Por volta das 20h30, o cenário mudou. Já era possível perceber mais usuários vagando.
Três homens estavam sentados no meio-fio na esquina das ruas Helvétia com Dino Bueno fumando cachimbos de crack. As ruas estão quase desertas, poucos carros escolhem os caminhos paralelos à Avenida Duque de Caxias. A presença de viaturas da Guarda Civil Metropolitana (GCM) e da Polícia Militar nas ruas antigas da Cracolândia evidenciam que o local ainda está em transformação.
<b>Vida cultural</b>
A diminuição do comércio de drogas traz esperança de revitalização da vida cultural na região, onde estão, por exemplo, o Museu da Língua Portuguesa e a Pinacoteca e a Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica paulista. Funcionários de uma das mais importantes casas de concertos do País afirmam que foi um "alívio" a queda do número de usuários.
Eles citam também a criação de uma nova ligação entre a Sala São Paulo e a Estação da Luz como mais um fator de segurança. "Tanto os funcionários da Sala São Paulo, quanto os músicos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sentem as melhorias", diz nota da Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo.
A migração dos usuários de drogas, no entanto, ainda não teve grande impacto no público. Funcionários opinam que a mudança ainda é recente e que é preciso esperar mais um pouco. A secretaria afirma que "a alteração do fluxo e a inauguração do novo acesso direto do Complexo Cultural Júlio Prestes para a Estação da Luz têm potencial de revitalizar o público e aumentar o tempo de permanência das pessoas na região".
Os próprios moradores estão redescobrindo caminhos que antes eram proibidos. A gerente condominial Sônia Domingues, de 51 anos, conta que precisava dar uma volta de 20 minutos para chegar ao Sesc Bom Retiro. "Hoje, caminhamos cinco minutos e chegamos ao Sesc. Podemos circular sem dar grandes voltas", destaca ela, moradora da região há três anos.
Logo após a saída do "fluxo", as ruas se transformam num canteiro de obras de limpeza, zeladoria e conservação urbana, com a lavagem das calçadas e recuperação de uma região praticamente abandonada há anos. As obras continuam. "O barulho das máquinas de obras e o cheiro de piche nos devolvem a alegria e a esperança", opina Luciana Lanzillo.
<b>Dificuldade até para pedir pizza</b>
"Pânico" e "caos" são termos usados com frequência por quem vive e mora nas proximidades da Praça Princesa Isabel para descrever o cotidiano após a migração de usuários e traficantes para a região há cerca de um mês. As queixas mais comuns se referem à alta de assaltos e roubos.
Um deles foi registrado pela câmera de segurança de um restaurante. Na semana passada, um casal de idosos foi assaltado no ponto de ônibus em frente ao número 632 da Avenida Duque de Caxias. Nas imagens, o criminoso empurra o idoso e arranca a bolsa da mulher. Após o roubo, ele atravessa a praça caminhando. O relógio da câmera marcava 11h30 da manhã.
Moradores e comerciantes preferem não se identificar para relatar as dificuldades. Vivendo na Praça Princesa Isabel desde 1994, o mecânico Carlos (nome fictício), de 35 anos, afirma que esse é o período de maior insegurança na área, superando o ano de 2017, quando a Cracolândia migrou da Luz para a praça após uma ação ostensiva da polícia. "A gente percebe que eles se sentem mais seguros e violentos nos assaltos", diz.
Os assaltos não se limitam aos objetos dos pedestres. Moradores contam que os semáforos de quatro cruzamentos da Avenida Rio Branco estão desligados há 15 dias por causa do furto da fiação. O cenário foi confirmado pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET).
"Os defeitos dos semáforos na região da Av. Duque de Caxias estão associados a casos de furtos e vandalismos de componentes de semáforos e cabos de alimentação nesses equipamentos. A CET já acionou equipes de manutenção para os locais reclamados", informou o órgão municipal. Em toda a cidade, a pandemia e a crise econômica levaram a um aumento de 91% no vandalismo e roubos de fios de semáforos.
"Até a numeração dos prédios está sendo roubada", diz um morador da Rua Guaianases. "A solução foi escrever o número do edifício em uma folha de papel e prendê-la com fita adesiva em local visível", conta.
Os moradores relatam dificuldades até para pedir uma pizza ou solicitar veículos por aplicativo. A estudante Maísa, de 18 anos, afirma que os cancelamentos dos motoristas de app são constantes. "Restaurantes que sempre fizeram entrega se recusam quando a gente informa o endereço", reclama o morador Paulo Souza, da Rua Guaianases.
O psiquiatra Flávio Falcone faz uma ressalva. "Há uma campanha de demonização em que os usuários são criminalizados. O principal problema, que é o de moradia, continua sem solução nenhuma. Os traficantes continuam lá", diz o especialista que atua há 10 anos na região da Cracolândia.
O espalhamento de usuários e traficantes era esperado pela Prefeitura de São Paulo e faz parte da tentativa de resolver o problema da Cracolândia. A avaliação é de Alexis Vargas, secretário executivo de Projetos Estratégicos da Prefeitura. "As cidades do mundo que resolveram problemas semelhantes, da cena de uso aberta na cidade, passaram por uma primeira fase de dispersão. Isso faz parte da solução. É normal e esperado. Nosso papel é não deixar que eles se estabeleçam em outro lugar", afirma Vargas.
Entre os atendimentos de serviço social, o secretário afirma que 456 pessoas foram encaminhadas para os programas de acolhimento da Prefeitura entre 18 de março e 11 de abril. Desse total, 142 foram direcionados para atendimento específico para os casos de uso abusivo de álcool e outras drogas no Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT).
As equipes da Subprefeitura da Sé informam que realizaram serviços de zeladoria com o recolhimento de lixo e produtos que caracterizam a ocupação permanente na Praça Princesa Isabel. Entre os dias 4 e 11 de abril, foram retiradas cerca de 142 toneladas de móveis, peças quebradas de aparelhos eletrônicos, madeiras, colchões e plásticos. Na área de segurança, Alexis afirma que a Prefeitura está intensificando o monitoramento nos pontos onde os traficantes tentam se instalar.
Já a Secretaria de Segurança Pública informou que uma das ações realizadas na praça é a Operação Caronte, da Polícia Civil, "que resultou na prisão de 93 traficantes de drogas e na instauração de sete inquéritos policiais, com robusto conjunto probatório".
Ainda conforme a pasta, a Polícia Militar atua na região em atividades de policiamento preventivo e ostensivo, como os programas de radiopatrulhamento, policiamento comunitário, Força tática, Rocam, entre outros. A PM mantém duas bases comunitárias (uma fixa e outra móvel) na praça. No cruzamento entre a Rua Helvétia e a Avenida Rio Branco, há outra base e três viaturas. Entre os dias 1º e 13 de abril, a GCM atendeu cinco ocorrências, em que cinco indivíduos foram conduzidos à delegacia e dois ficaram detidos.