Nascemos como um animal qualquer. A nossa humanidade – aquilo que nos distingue de outros animais – é algo trazido até nós por pessoas que conhecem as necessidades humanas e nos amam. Inicialmente, nossos pais que nos protegem, nos alimentam, nos ensinam a falar. Depois, parentes, vizinhos, amiguinhos. Mais tarde, professores, colegas, amantes. E, por fim, companheiros de trabalho, de clubes, de partidos políticos etc. Enfim, somos humanos apenas porque tivemos a sorte de conviver com seres humanos.
Isto é demonstrado pelas crianças selvagens, aquelas criadas por lobos, cães e outros animais. Elas são descritas assim, num estudo da Faculdade de Educação, da Universidade de Lisboa: se alimentam, bebem e comem como os animais, dos quais conhecem e reproduzem a mímica e os sons, e, com os quais gostam de estar. Não gostam da companhia de pessoas, nem de roupas.Não riem ou choram. E, muitas vezes, têm ataques de raiva, quando exibem uma força particular, mordendo ou arranhando quem estiver próximo. Ou até elas mesmas.
Estas crianças são achadas em cavernas escondidas nas matas lugares, distantes dos núcleos urbanos.
Mas, não só naqueles lugares, e, naquelas circunstâncias. Também nas nossas cidades
podem ser encontradas crianças que não puderam se humanizar, como mostra Esmeralda do Carmo Ortiz, no livro autobiográfico “Por que não dancei”.
Ela conta que nasceu,
Naquelas condições, apenas dois dos seus seis irmãos sobreviveram. Sua irmã mais velha chegou aos 11 anos, mas foi morta, após ser estuprada por três homens da vizinhança. Esmeralda viveu grudada na mãe, desde bebê até os 8 anos. Não largava dela, nem quando ela caía bêbada, nos bares e restaurantes, nos quais mendigava. Ainda assim, não escapou de estupro, aos 8 anos. Seu estuprador: o padrasto ex-detento tuberculoso. Também aos 8 anos, ela começou a fugir do barraco porque à noite não tinha sossego. Era atacada a pauladas pela mãe, em pleno delírio alcoólico. Nas ruas, desde então, não tinha completado 9 anos quando foi presa e encaminhada para a Febem, pela primeira vez. Naquela instituição, os monitores a surravam. Ela, então, fugiu. Passou a dormir em buracos feitos por ratos debaixo de pontes. E perambulava o dia todo pela Praça da Sé. Para suportar aquela rotina, começou a cheirar cola de sapateiro e a fumar maconha. Depois, se viciou em crack e teve de roubar para pagar as pedras que fumava. Aos 13 anos, já era traficante.
Quase todas as crianças, com as quais conviveu, enlouqueceram ou foram assassinadas.
Já Esmeralda encontrou educadores e aos poucos se integrou ao trabalho social deles. Com 19 anos, foi internada numa clínica de reabilitação de drogados. E finalmente, ganhou uma identidade social, quando publicou seu livro, com a ajuda do jornalista Gilberto Dimenstein.
Recentemente, o ator Antônio Abujamra, perguntou a ela, numa entrevista: Qual é o maior perigo enfrentado por uma criança de rua? Esmeralda respondeu: Ter sonhos porque a realidade vem e mata os sonhos dela.
Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP