Sentado numa cadeira de madeira do lado esquerdo da mesa, os olhos de Kleber Cavalcante Gomes, o Criolo, ficam marejados. A camisa azul entreaberta e as mãos cruzadas de maneira torta e desajeitada mostram um rapper visivelmente emocionado. Com a voz trêmula, o paulistano fala das suas primeiras composições. Algumas delas, escritas há mais de 15 anos, integram o disco Ainda Há Tempo, lançado em 2006, bem antes dos renomados Nó na Orelha (2011) e Convoque Seu Buda (2014), quando seu nome artístico ainda era Criolo Doido. Olhando fixamente para o pai, o senhor Cleon Gomes, também presente na sala, busca ar para dar continuidade à linha de raciocínio. Já recuperado da avalanche de recordações, faz um breve resumo de sua trajetória iniciada no bairro do Grajaú, no extremo sul de São Paulo, e lembra dos passos iniciais no mundo da música.
O primeiro trabalho de Criolo, Ainda Há Tempo, comemora 10 anos em 2016. Para celebrar a data, o músico fará uma série de shows pelo País, sendo o primeiro no dia 1.° de abril, no Áudio Club, zona oeste da capital paulista. No dia 8, o single Ainda Há Tempo será relançado nas plataformas digitais. O disco físico completo só estará disponível na segunda quinzena de maio. “Eu e o Daniel Ganjaman (amigo e produtor musical) sempre tivemos o desejo de fazer algo com o Ainda Há Tempo. À época, foram só 500 cópias. Nunca tivemos a oportunidade de produzir um show somente deste álbum. Então, quando a data comemorativa foi se aproximando, pensamos que tínhamos que fazer alguma coisa. Foi o meu primeiro disco, mas já estava 18 anos na estrada quando ele nasceu. Algo extremamente importante para mim”, diz o músico em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo.
As apresentações de Ainda Há Tempo terão uma concepção artística diferente. A cada canção do show, o telão de LED exibirá um momento específico da trajetória de Criolo.
O teaser de Chuva Ácida, visto em primeira mão pela reportagem do Estado, apresenta o músico caminhando pelo bairro do Grajaú. As imagens mostram Criolo circulando pelos principais pontos que marcaram sua infância e adolescência até chegar ao centro da cidade de São Paulo. A paisagem móvel foi imaginada pelo artista plástico Alexandre Órion, que elaborou as engenhosas e lisérgicas animações que acompanham o fluxo contínuo das canções da turnê. Trata-se, portanto, de uma releitura audiovisual do que aconteceu na vida de Criolo.
“O hip-hop nos ensinou algumas coisas e a gente está tentando passar isso para frente, do nosso jeito. O gênero agrega. Ele sempre quer apresentar novos caminhos e beber de outras fontes. A ideia de ter uma direção de arte, coisa que eu nunca tive, veio, então, num momento especial. Passei para o Órion todo meu sentimento, o que cada uma das músicas tinha de importância. Na direção musical, responsabilidade do Ganja, tivemos a feliz ideia de convocar novos bitmakers da cena para que cada um, do seu jeito, elaborasse a parte instrumental”, afirma ainda.
Mesmo depois de uma década, o disco menos conhecido da carreira de Criolo continua com letras atuais que, de diferentes formas, refletem a realidade do jovem da periferia. As duras rimas das 22 faixas mostram um Criolo em desenvolvimento, mas cheio de coisas a dizer, como a letra de No Sapatinho: “Eles querem que você desista, mas jamais se dê por vencido. E se eu vim pra cá é porque tenho uma missão. Talvez seja cantar rap ou cuidar do meu irmão”. “Sentimos uma dor muito grande porque todas as letras, na verdade, são muito atuais. Ainda vivemos nesse abismo social. Isso é doloroso. Olhamos para as letras e percebemos a força desse rap nas nossas vidas e nas vidas das pessoas. É natural que eu reviva muitas memórias da minha infância e adolescência. A esperança não morre. É uma das coisas que fazem a gente seguir em frente. Eu olho para trás e vejo quanto de sentimento havia ali. Isso tem mexido muito comigo porque foi o primeiro disco e, vindo de onde eu vim, o mundo dizia que nada de bom estava reservado para mim. Jogam para o jovem, para essa geração toda que está aí, inclusive para os mais velhos, de que você não é capaz de ser alguém que vai conquistar seus objetivos. Me emociona porque mexe com a minha história, minha vida e raízes”, crava Criolo.
Como as masters originais não existiam mais e as sessões de áudio não podiam ser abertas, algumas das batidas foram recriadas por novos produtores do rap brasileiro. “O Criolo dos três discos ainda é o mesmo: um cara do Grajaú para cima e para baixo e que tem muito orgulho das suas raízes familiares e de tudo o que viveu”, complementa.
Momento político
Criolo usa frases de efeito para falar sobre a atual situação política e econômica do País. Para ele, o discurso de ódio na sociedade é iminente e precisa ser estancado, antes mesmo de dar início a qualquer tipo de embate. Segundo o músico, o grande problema do Brasil continua sendo o preconceito, seja ele referente à raça, religião ou orientação sexual. “Infelizmente, o preconceito é algo latente em nosso cotidiano. Não é só na música, claro. Meu pai já foi detido por ser negro. Ele acabou preso pelo simples fato de ser negro. Quando você entrega um currículo para uma vaga de emprego, por exemplo, ele, na maioria das vezes, precisa ter foto. Isso é muito forte. Eu escuto pelos quatro cantos da cidade de São Paulo que todos querem um Brasil melhor. Mas, se todo mundo almeja isso, por que nossa situação ainda é tão delicada. Por que uma mulher precisa ser tratada como serviçal do homem em pleno 2016? Por que uma pessoa precisa perder a vida por assumir sua homossexualidade? O rap é minha comunicação com a sociedade. Eu só quero dividir com o mundo que o ódio não vale a pena. Eu não quero que pessoas como meu pai sofram preconceito racial. Eu não quero que minha mãe sofra qualquer tipo de discriminação por ter sotaque nordestino. Eu não quero que meus amigos homossexuais apanhem nas ruas porque demonstram seu amor de uma outra forma”, afirma ainda.
Sobre as manifestações pró e contra governo, Criolo é incisivo. “Todo mundo fala que quer um Brasil melhor, mas tem a coragem de estourar a cara do outro que pensa diferente. Eu não entendo esse contraste tão absurdo. Não dá para tratar nosso cenário político como uma guerra de torcida, porque isso que está acontecendo mexe com a vida de todos os cidadãos brasileiros”, conclui.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.