Pela terceira vez em um ano e sete meses, desde o início de seu mandato, o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), está sendo acusado de censurar uma manifestação artística calcada na diversidade sexual e que seria abrigada por um equipamento cultural municipal. O motivo: o prefeito, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, a considerou ofensiva aos cristãos.
O alvo dessa vez foi o espetáculo teatral O Evangelho Segundo Jesus, rainha do Céu, que traz uma travesti representando Jesus Cristo e já foi cancelada em outras cidades por conta de ações de movimentos conservadores. A peça seria encenada essa semana na Arena Fernando Torres, no Parque Madureira, zona norte do Rio.
Crivella compartilhou um vídeo no Facebook no último dia 31 dizendo que a mudança se deveu ao fechamento prévio da arena, devido a uma ordem judicial, e também se colocando com veemência contra o conteúdo da peça. Paradoxalmente, ele chamou a notícia do cancelamento da encenação de “fake news”.
“O espetáculo ofende a consciência dos cristãos. Essa arena está fechada. E na minha administração, nenhum espetáculo, nenhuma exposição vai ofender a religião das pessoas. Eu não vou permitir. Enquanto eu for prefeito, vamos respeitar a consciência e a religião das pessoas”, diz Crivella no vídeo.
Em outubro do ano passado, o prefeito vetou pessoalmente a exposição Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira, programada para o Museu de Arte do Rio (MAR); na ocasião, ele disse que ecoava a rejeição do povo do Rio ao conteúdo da mostra, que sequer a havia visto, e a tachou de imoral, dizendo que as obras pregavam a “zoofilia” e a “pedofilia”. No mesmo mês, foi cancelada a peça Bicha Oca, no Castelinho do Flamengo, outro equipamento municipal – neste caso, a prefeitura alegou uma pane elétrica.
Nesta terça-feira, 5, foi realizado um ato pela liberdade de expressão e contra o cancelamento do Evangelho na Praça do Leão Etíope, na zona norte do Rio. A produção da mostra Corpos Visíveis, na qual o espetáculo se insere, informou que o espetáculo estava acordado com a arena para acontecer nos dias 8, 9 e 10.
Só na segunda-feira chegou a posição final da Secretaria de Cultura de que a programação estava de fato cancelada, segundo a produtora Sophia Prado. “É uma atitude transfóbica do prefeito. Como ele diz que não vai permitir esse tipo de evento na cidade, e a secretaria vem justificar que é um problema jurídico?”, criticou Sophia.
A peça já foi cancelada em Jundiaí e em Salvador pela Justiça, provocada por movimentados conservadores. “O vídeo deixa muito clara a intenção do prefeito, que não conhece o espetáculo e já o qualifica como ofensa. Nas outras cidades, foi uma censura vinda de grupos políticos e religiosos. Agora, o poder público diretamente, o que é bastante assustador”, lamentou a diretora da peça, Natalia Mallo.
“A gente já estava apreensivo, por saber que esta gestão é movida pelo fundamentalismo religioso, contrário à diversidade e aos direitos das pessoas LGBTQ. Mas essa censura escancarada, o preconceito tão explícito, não. Poderia haver algum decoro”, continuou.
“Esta intervenção direta do prefeito não é uma prática comum ou mesmo aceitável, visto que se trata de um estado laico”, diz a nota da mostra “Corpos Visíveis”. “Trata-se nitidamente de censura à visibilização e livre expressão artística dos corpos LGBTQI+, femininos, negros e periféricos. A peça já sofreu tentativas de censura em outros estados e aqui mesmo no município com perseguições sofridas por trazer uma atriz travesti no papel de Jesus e um roteiro que questiona “E se Jesus vivesse nos tempos de hoje e fosse travesti?”. A produção da Corpos Visíveis garante que a peça não busca ofender cristãos, mas cria um questionamento sobre a falta de tolerância e respeito nos tempos atuais pregando o respeito e o amor incondicional.”
A Secretaria Municipal de Cultura divulgou nota informando que não houve cancelamento da Corpos Visíveis, e explicando que por força de um mandado de segurança a arena está com todas as atividades suspensas há cerca de um mês. O mandado foi impetrado pelo antigo gestor do espaço. “Por causa desta decisão judicial, toda a programação está suspensa, e não apenas a mostra Corpos Visíveis”, diz o texto oficial. A reportagem questionou a secretaria sobre o vídeo e a ingerência do prefeito, e a resposta foi que a pasta não comenta declarações dele.