Assim como os judeus inventaram Hollywood – tese de Neal Gabler em seu livro “O Império do Cinema”, sobre as origens da indústria -, eles também se apossaram do jazz, tornando-o mais competitivo e, num certo sentido, universitário. O talento espontâneo, como no futebol, tornou-se inviável no jazz contemporâneo. O gênio fabrica-se, como diz o protagonista de “Whiplash”, explicando que está acabando com a garota porque ela vai terminar por afastá-lo do caminho que traçou para ser gênio.
“Whiplash” é o primeiro longa dirigido pelo roteirista Damien Chazelle. Aos 29 anos – completa 30 em 19 de janeiro -, o jovem de Providence/Rhode Island virou uma aposta segura para o próximo Oscar, cujos indicados serão anunciados na semana que vem (dia 15). A questão é – em quais categorias “Whiplash” poderá concorrer? Melhor filme, diretor, roteiro, montagem, trilha e ator. O certo seria indicar J.K. Simmons para o Oscar de melhor ator, mas a exemplo do Globo de Ouro e do SAG Award, é bem provável que ele concorra ao prêmio de coadjuvante, mesmo sendo protagonista, de igual para igual, com Miles Teller, que faz o garoto.
Existem ecos de vários filmes que devem ter marcado Chazelle – “Brilhante”, “Cisne Negro”. Mas dois foram os que estabeleceram o modelo para Chazelle. No Brasil, o filme ganhou um subtítulo – “Em Busca da Perfeição”. “Whiplash” narra o embate entre aspirante a baterista, que sonha ser gênio do jazz, e o regente da banda universitária em que faz seu (duro) aprendizado, de arte e vida. Miles Teller é o jovem, chama-se Andrew. J.K. Simmons – na performance de sua vida -, o regente, Fletcher. É um monstro. Suga o sangue dos integrantes de sua banda, submete-os a provas físicas que são quase sempre brutais sessões de humilhação.
Você já viu esses personagens em outros filmes, em outros contextos. Em 1987, exatamente 30 anos depois de fazer com “Glória Feita de Sangue” um dos maiores filmes de guerra do cinema, Kubrick voltou ao gênero para refletir sobre o Vietnã em “Nascido para Matar” (Full Metal Jacket). Kubrickianamente, ele filmou nos arredores de Londres, recriando o Sudeste Asiático dentro de um hangar. O filme divide-se em duas partes. Na primeira, um sargento instrutor quebra seus recrutas até transformá-los em máquinas de matar. Na segunda, Matthew Modine, já como soldado, caça atirador que está matando seu pelotão, sem saber que é ela – uma atiradora.
O embate entre o recruta e o sargento ganha versão musical e jazzística. Modine e Lee Ermey viram Miles Teller e J.K. Simmons Kubrick dizia que o cinema é montagem. É uma regra que Damien Chazelle segue a ponto de transformar os intermináveis ensaios em elaborados (e precisos) exercícios de corte e montagem. Bem antes, um ex-montador, Robert Wise, fez escola nos anos 1950 realizando dramas urbanos que embalava em música de jazz, filmando em preto e branco para captar o clima enfumaçado dos cabarés. Chazelle filma bem, monta bem – a busca da perfeição, mais que dos personagens, talvez seja dele. Ele viu seu Wise, mas Kubrick foi uma de suas referências. Só que há outra.
Em 1979, Peter Yates, grande diretor de filmes tão diversos entre si quanto “Bullitt”, “John e Mary” e “Os Amigos de Eddie Coyle”, fez “O Vencedor/Breaking Away”, contando a história de uma corrida de bicicletas em que os competidores são levados ao limite. Em “Film Comment”, Chris Norris, um escritor de Nova York, toma “O Vencedor” como a pedra de toque de “Whiplash”. Talvez não seja – é o Kubrick -, mas o clima de disputa e o desgaste físico contribuem para fazer de “Whiplash” um grande filme de jazz aeróbico. Fletcher/Simmons pressiona, Andrew/Teller quebra. Seu pai, um bom sujeito, mas escritor medíocre que se contentou em ser professor de literatura, vai tomar a defesa do filho. Há um quiproquó jurídico que vai destruir a carreira de Simmons, como o próprio Simmons destruiu a de Teller. Mas eles se reencontram, e agora para o definitivo acerto de contas.
Para Simmons, um solo de Charlie Parker, que o transformou em Bird, é o nirvana do jazz. Pela segunda vez ele vai tentar quebrar Teller, e quase consegue. Mais duro e cruel que Simmons é Chazelle. Quando está recuando, mais uma vez, Teller defronta-se com o pai e percebe que vale tudo para não ser como ele. Hollywood faz muitos filmes sobre família, muita baboseira, e não por que família não seja importante. Chazelle bate forte. A meia hora final de “Whiplash” toca a perfeição que o diretor persegue.
Simmons confessa que, por mais que tenha tentado, nunca cruzou com um Charlie Parker em seu caminho. Teller observa, como pássaro (bird) ferido, que ele pode ter desencorajado muitos Charlie Parkers. Simmons retruca – ninguém pararia Charlie Parker. É um desfecho grandioso, magnífico. Encerra um filme que já nasceu clássico, e não apenas sobre jazz.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.