Variedades

Daniel Limaverde produz músicas entre quatro paredes

Uma ideia na cabeça e um laptop na cabeceira da cama. A nova música que nasce da democratização dos meios de produção já é uma realidade: artistas como Toro Y Moi (Chaz Bundick, expoente da chillwave, que, em 2009, fazia música em seu quarto enquanto cursava a faculdade de design), Washed Out (desempregado após se formar, Ernest Greene, criador da banda, teve que voltar para a casa dos pais, onde começou a produzir música no quarto) e mesmo o novo mainstream da dupla Macklemore & Ryan Lewis (que produzia beats em casa antes de estourar) são apenas alguns dos nomes cuja música nasceu no leito.

O Brasil já tem muitos desses. Um deles é Daniel Limaverde. Filho de uma lenda da MPB (o cantor Ednardo, do hit Pavão Mysterioso), ele cresceu com instrumentos em casa. Aos 3 anos, já brincava fazendo batidas no teclado do Yamaha do velho. Hoje, com apenas 23 anos, Limaverde já é apontado por especialistas como uma das “próximas grandes coisas” da música. Sem sair muito do quarto, faz músicas com laptop e não tem pressa. No colégio Notre Dame, onde estudou, a diretora, para mantê-lo sob controle, dava a chave do auditório do piano de cauda, para ele ficar tocando. Largou o curso de Psicologia na UFRJ depois de um mês de aula e mergulhou na música.

Na próxima semana, Limaverde embarca para o Japão. Ele foi um dos 60 escolhidos, entre 6 mil inscritos de 110 países, para o encontro musical Red Bull Music Academy, que vai até o dia 14 e promove junções de artistas e produtores em workshops, sessões em estúdio, performances e shows. Limaverde, o capixaba Silva e o produtor, DJ, instrumentista e vocalista Pedro Zopelar são os únicos brasileiros. Já estiveram entre os convidados nomes como Erykah Badu, James Murphy e Lee Scratch Perry.

Impressiona a faixa etária dos novos fenômenos da produção musical de ponta no mundo. Quase nenhum deles passou dos 30 anos. Um desses garotos tomou conta até do que era a reserva moral do passado: o novo disco do mago da produção Brian Eno. O álbum colaborativo entre Eno e Karl Hyde, Someday World, foi inteiramente produzido por um menino de 22 anos chamado Fred Gibson (que também tocou piano, bateria, baixo e fez vocais de apoio no disco). Gibson é outro convidado do Red Bull Music Academy. A seguir, leia entrevista com Daniel.

Por que você escolheu trabalhar música com tecnologia? “Não escolhi o elemento eletrônico por causa da estética, mas por causa do instrumento que eu uso, o laptop, que me propicia fazer música. Eu tinha banda de rock antigamente, cresci tocando instrumentos e nunca pensava em tocar música no computador. Quando eu tocava, era guitarrista, vocalista e pianista. Uma coisa meio Matt Bellamy, do Muse (risos). Sempre cantava e tocava alguma coisa. Aprendi também um pouco de violoncelo, mas não persegui muito. Quando a banda acabou, eu estava meio desiludido, cansado de reunir pessoal para ensaio, e comecei a fazer música sozinho. A produzir de verdade, comecei há uns dois anos e meio”.

Vi que você toca em festas e eventos de música já há algum tempo, não? “Toquei recentemente em alguns lugares. Tem esse amigo, João Paulo Cuenca, que é escritor e cineasta e também tem uma banda. A gente se juntou para tocar e fizemos uns shows. No ano passado, fiz shows em Belo Horizonte e Vitória. Nunca fui uma pessoa de sair muito de casa, não faço parte de uma cena. A maior parte do meu tempo eu fico em casa, fazendo minha música. Se saio para tocar em algum lugar é que, por acaso, fui escolhido. Não quero lançar qualquer coisa, se você ouve minhas músicas no Soundcloud, coloco músicas e, depois de dois meses, tiro.
Quero que seja algo realmente bom, então essa minha autocrítica não me permitiu ainda dizer: isso aqui é eu vou fazer. Os shows são todos diferentes. Com o Cuenca, era uma coisa meio dark side, meio Caribou, eu no laptop, ele na guitarra, e tudo processado. Não tive um projeto muito definido até agora. Acho muito fácil hoje, pelo fato de você ter acesso à internet e ter um laptop, já sair fazendo música e divulgando. Não comecei a fazer música para chamar a atenção, mas porque gosto. Tenho esse negócio de me esconder, não tenho uma persona definida que possa dizer: esse é meu projeto. Quero ter isso no primeiro trimestre do ano que vem. Esse negócio da Red Bull deu uma chacoalhada em mim. Decidi me enfurnar em casa e aprender música sozinho. Não tentei uma faculdade porque minha intenção não é ser um instrumentista, é ter a minha coisa. Se não a tiver, ao menos quero participar do trabalho dos outros, como facilitador, como produtor”.

Esse termo facilitador parece bem da nova era tecnológica, não? “Tenho muito interesse em servir de produtor musical para uma cantora, ou um cantor. Tenho vontade também. Acho que, aqui no Brasil, a produção musical, esteticamente falando, é muito brega, muito normal. As pessoas não estão pensando muito fora da caixa. A limitação de ter de usar um laptop pode ser mais um benefício”.

Por quê? “Essa ideia de “facilitaram os meios de produção musical”. Mas aí acham que é só porque ficou mais barato comprar o equipamento e enviar a música para o sans. Mas acho que é a evolução do que é o fazer musical. Desde o início da história da humanidade, a música que a gente sempre ouviu é sempre um produto do instrumento que a gente está utilizando para criar. Por exemplo: não foi o Jimi Hendrix quem inventou a distorção, nem o feedback nem a guitarra elétrica. O Jimi estava tocando a guitarra, que um cara inventou, e, quando ele chegou perto do amplificador, viu que fazia feedback e pensou: legal isso daqui, vou experimentar com isso. E aí ele fez aquele tipo de música. Agora, ele nunca conseguiria fazer aquele tipo de música se não existisse esse defeito, o feedback. Eu acho que é a mesma coisa no laptop: o som de um instrumento, como um clarinete gravado num estúdio em Berlim, e depois você consegue tocar no teclado, sampleado. E por que você tem de tocar como clarinete? Pode usar de maneira diferente. Não precisa tocar um clarinete com a intenção de soar como um clarinete, pode fazer ele soar como um sintetizador, mas de uma maneira meio orgânica. A limitação propicia mais criatividade”.

Parece um conceito teatral. Uma pedra no palco representa uma mesa, por exemplo. “É exatamente isso. Meu conceito de música, antes de produzir, de mexer com frequências, tipo “ah, agora eu tenho de cortar aqui, em 200 hertz, agora tenho de levar aqui para hertz para soar melhor”, antes de trabalhar com esse tipo de coisa, minha noção era em notas, as 12 notas cromáticas do piano. Depois disso, comecei a perceber que é tudo som, é tudo frequência. Quando você começa a samplear o som de bolas de pingue-pongue para obter uma batida, você começa a expandir mais a cabeça. Dois caras que me fizeram entrar nesse mundo foram o James Blake e o Nicolas Jaar. Era uma coisa que, de início, eu não entendia tão bem. Você vê como gosto é uma parada maleável. É como falar português ou inglês: é um lance adquirido, não é uma parada inerente. Não existe música boa ou música ruim, porque é uma forma de comunicação”.

Você cita Arvo Päart em algumas entrevistas. Por quê? “Ele faz música que harmonicamente é muito simples, ridiculamente simples. Esse estilo que ele usa, o tintinnabuli, estilo minimalista, que é baseado em simplesmente no acorde tônico dominante. Por exemplo, ele faz uma música em lá menor, usa as quatro notas do acorde em lá menor. E não vai usar nenhuma outra nota. Mas a forma que ele constrói a música, ao mesmo tempo que não faz você ir a lugar nenhum, que faz você se sentir estável, ela evolui. É como se, ao invés de contar uma história linearmente, com começo, meio e fim, a música preenche um espaço real, um ambiente. E você entrasse naquela música e vivesse lá por um tempo. Uma canção do Chico Buarque, muitas vezes é um filme, tem a mocinha, o herói. O que é ótimo. Mas a música do Arvo e do James Blake, e muito da música eletrônica, o tecno, a house, é como se a música estivesse preenchendo um espaço, não só contando uma história, mas criando uma arquitetura, um lugar para você viver no espaço e no tempo. Eu comecei a me interessar por isso, essa música que cria esse efeito. Quando eu falo ambiente, não é ambient music tipo Brian Eno nem é música de elevador. É aquela música que, se você aumentar o volume no máximo, ela pode ser angustiante. Não é só o bê-á-bá de sempre”.

No livro do Alex Ross, O Resto é Ruído, ele diz que a música erudita de hoje é a música da Björk. Você acha que a música dela ocupa esse espaço, que no século 19 os compositores românticos ocupavam? “As pessoas mais avant-garde hoje em dia são da música eletrônica. Não são do jazz, não é da música erudita, não é do rock. Os caras mais vanguardistas, mais cascas grossas são da eletrônica. Caras que muitas vezes trabalham sozinhos”.

Tem muita música sendo feita em ambientes domésticos, no quarto ou num pequeno estúdio doméstico. “O Arca, produtor venezuelano, contou que, em determinado período, ia contar como compunha. Ele abre o laptop, abre o sintetizador, pega esse sintetizador, o ISA Focus, que eu já tinha apanhado aqui no meu laptop, que é um sintetizador que é visual. Você joga um sample nele e aí recorta visualmente, como se fosse um Photoshop com sintetizador. Ele faz tudo com um laptop. Não sei como ele produziu a Björk dessa maneira. Ele não é parecido comigo, ele é muito mais impermeável. A música dele é impermeável porque ele parece ter uma visão já compacta do que faz”.

As suas músicas então seriam ainda passíveis de serem contaminadas? “Eu sou muito passível de ser contaminado. As músicas, uma vez que eu as acabo, ficam lá daquele jeito. Mas, se você for ouvir minhas músicas no Soundcloud, vai ver que é tudo muito diferente uma das outras. Eu não busco ter uma assinatura, o que estou falando mais é que eu não consegui ter uma assinatura porque não consegui ter uma. Enquanto o Arca, o James Blake, eles têm assinaturas. O Blake é aquela música esquelética, aquele bumbo, aquela caixa, tudo muito fino, muito bem definida, você ouve a voz dele quanto ele está usando overdub. Eu fui ao show dele, e fiquei em frente ao subgrave, e acho que, se eu tivesse algum câncer, aquela batida tinha matado. É muito doido. Já Ryuishi Sakamoto é um dos meus caras preferidos também. A música dele é como se estivesse pintando, uma coisa meio Pollock”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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