Aos 51 anos, que completou em janeiro, Heitor Dhalia é autor de uma obra consolidada que inclui títulos como Nina, O Cheiro do Ralo, À Deriva, 12 Horas, Serra Pelada, Tungstênio. Em entrevista ao <b>Estadão</b>, ele conta que nunca teve tanta dificuldade como com seu novo longa, Anna. O filme estreia nesta quinta, 1º, depois de uma semana inteira de pré-estreias. A estreia em salas é uma exigência legal da Ancine, sob pena de a produção ter de devolver o dinheiro captado para a realização. Heitor reflete – "Nunca fiz um filme como esse, que tenha sido tão desafiado pelo seu tempo".
O desafio vem desde a elaboração do roteiro e atinge agora o lançamento. Quem poderia imaginar que, depois de colher talvez as melhores críticas da carreira de Heitor no Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Anna chegaria às salas em plena pandemia, quando o público ainda está reticente com a ideia de voltar ao cinema? "Lá atrás, há cinco ou seis anos, quando Anna começou a tomar forma no roteiro, Nara (Chaib Mendes) e eu queríamos abordar um relacionamento tóxico num meio artístico, e escolhemos o teatro. Um diretor consagrado que tem uma ligação abusiva com sua atriz."
Para o público que verá Anna somente agora, deve parecer indiscutível que Heitor e sua corroteirista tenham viajado na trilha aberta pelas denúncias contra o produtor Harvey Weinstein, e na sequência pelo alcance do movimento #MeToo, que sacudiu a indústria nos EUA. "Na verdade, o filme é anterior a tudo isso, e nosso desafio foi seguir com o trabalho sem risco de cair no panfletarismo." O diretor no filme e sua atriz, que faz Ofélia numa montagem experimental de Hamlet. No passado, outra tentativa de abordar a obra clássica de Shakespeare já resultara em fracasso. O diretor levara sua Ofélia, a namorada da época, à loucura. Agora, com outra atriz, a história irá repetir-se?
"Anna começou como um filme pequeno, de arte. A ideia era refletir sobre o processo criativo a partir da figura mítica do diretor, sua relação com o elenco e o fazer teatral. Foi difícil levantar a produção, e quando isso ocorreu houve a Primavera Feminista, que nos levou a um trabalho de ressignificação do roteiro. Depois veio o #MeToo, e de novo o debate público levou a outra ressignificação do tema. Para completar tudo isso, chegamos agora ao lançamento, nestas circunstâncias."
É significativo que Anna, o filme, comece por uma montagem de Um Bonde Chamado Desejo, a peça de Tennessee Williams que deu origem ao filme Uma Rua Chamada Pecado, de Elia Kazan. "O relacionamento de Banche (DuBois) e (Stanley) Kowalski já é abusivo na peça e no filme, mas aí a nossa discussão evolui para o Hamlet.
A ideia sempre foi olhar para a complexidade da natureza humana, num processo em que o elenco dentro da peça e o elenco do próprio filme pudessem contribuir com suas vivências." Um colega de elenco de Anna, a atriz, chega a comentar que não entende como ela e a atriz da montagem anterior possam querer fazer o papel dessa mulher que sofre tanto. É o estopim para o abuso que norteia a relação em cena.
Em todas as etapas – roteiro, realização, montagem -, Heitor Dhalia teve sempre presente a necessidade de não ceder às pressões do momento para fazer uma obra perene. "A preocupação era fazer uma obra além do tempo." Neste Brasil que parece tão orgulhoso da própria boçalidade, ele acha que a salvação virá dos clássicos. "Arthur, o diretor dentro do filme, faz uma reflexão sobre o poder que ele próprio encarna perante a companhia. É aquela fala sobre ser e continuar rei, uma coisa que vem de Hamlet, mas se refere a Macbeth, Rei Lear e a outros grandes personagens de Shakespeare. Essa coisa de estar no comando e ser desafiado o tempo todo."
Impossível falar sobre o filme sem destacar o elenco. O argentino Boy Olmi era principalmente um ator de comédias em seu país. Heitor queria caras novas e buscou muita gente, incluindo Bela Leindecker, a Ofélia, no teatro. Trabalhou com um preparador de elenco, Chico Accioly, que foi decisivo para o resultado. Tanto empenho, e Anna está estreando numa fase de salas vazias, ou quase. O repórter relata a própria experiência – almoçou no restaurante lotado do IMS e, na sequência, viu Uma Rua Chamada Pecado, na reabertura do Belas Artes, numa sala com apenas mais duas pessoas. Heitor: "Sou otimista. Acho que as pessoas preferem o restaurante porque estamos todos necessitados de ver gente, de se sentir próximo, vivo. No cinema, com o isolamento, continuamos distantes. Isso vai passar".
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>