Mundo das Palavras

Debaixo dos caracóis

Caetano parece cansado e Gal, sem sorrir, claramente contrariada, debaixo dos caracóis de seus cabelos, ao serem fotografados por Cynira Arruda, no final de 1968, num apartamento da Avenida São Luís, em São Paulo, para uma matéria da Revista Intervalo, assinada por mim. Mas aqueles caracóis dos cabelos de Caetano não eram os mesmos que Roberto Carlos iria ver no exílio imposto a seu colega cantor em Londres, dois anos depois, mencionando-os repetidas vezes numa música composta por ele e Erasmo Carlos.
 
Como os caracóis dos cabelos da letra daquela música os da foto também tinham debaixo deles “muitas histórias para contar”. Carregadas de conflitos e angústias porque Caetano enfrentava a reação que seu movimento tropicalista provocara à direita e à esquerda do espectro político radicalizado daquele momento. Mas eram histórias ainda distantes da dramaticidade das que os caracóis dos cabelos dele iriam abrigar, nos meses seguintes, quando Caetano foi preso por agentes da Ditadura Militar.
 
Mantido por uma semana inteira numa cela solitária do tamanho de um armário de roupa, cuja largura era toda ocupada por suas pernas quando ele sentava sobre seu chão de cimento nu, cobrindo-se apenas com um cobertor, o único aparatode que dispunha ali para amenizar o total desconforto do lugar escuro.
 
Naquele período, Caetano foi vítima da simulação de fuzilamento, teatrinho perverso cujo desfecho foi exatamente o corte de todos os caracóis dos cabelos dele na barbearia a prisão imposto. Uma imposição dos militares que o mantiveram prisioneiro por dois meses, até expulsá-lo do Brasil.
 
Na verdade, aqueles caracóis de cabelos fotografados na Avenida São Luís terminaram entregues numa caixa à Dedé, mulher de Caetano – triste despojo -, graças à solidariedade inesperada do barbeiro da prisão. Ela os lançou no mar em reverência amorosa à Yemanjá.   
 

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