Ao observar os detalhes cênicos de Cura, novo trabalho da coreógrafa e diretora Deborah Colker, que é uma grande celebração da vida, o diretor de arte Gringo Cardia foi taxativo: "Deborah conversou com Deus neste espetáculo". De fato, o trabalho que estreia nesta quinta, 4, no Teatro Alfa, é único nos 27 anos de história da companhia comandada por ela. "Usei a ciência como parceira e, com ela, aprendi que é preciso lutar, mas sempre com paciência", diz Deborah.
Cura é o resultado de um longo processo de gestação criativa, que começou quando a coreógrafa provavelmente ainda não sabia que levaria suas apreensões para o palco. O espectador que for assistir ao espetáculo precisa prestar atenção na voz que narra, logo no início, a história de Obaluaê, orixá das doenças e das curas. A cativante locução é de Theo, seu neto de 12 anos.
Um feliz encontro, pois ele narra a trajetória do orixá que nasceu com problemas físicos e é rejeitado, sendo acolhido por Iemanjá, que vê beleza onde todos apontam feiura. E Theo, desde bebê, lida com epidermólise bolhosa, que provoca feridas na pele ao menor atrito, o que exige cuidado no seu dia a dia. "Quando ouvi a narrativa do Obaluaê, contada pelo coreógrafo Zebrinha, do Balé Folclórico da Bahia, fiquei impressionada, pois eu tinha uma história pessoal que se relacionava com aquilo", conta Deborah. Era 2019 e ela já maturava Cura.
<b>ÁFRICA</b>
Antes da Bahia, a coreógrafa tinha visitado Moçambique, na África, onde uniu elementos da cultura africana à indígena e oriental, garantindo referências de várias religiões. O projeto – que deveria estrear em 2020, em Londres, mas foi cancelado pela pandemia da covid – crescia em referências e pedia novos colaboradores. Como o rabino e escritor Nilton Bonder que a ajudou a estabelecer uma ponte entre ciência e fé, entre amor e genética, entre aceitar e lutar.
O clique surgiu quando Deborah mostrou para Bonder uma gravação em que Theo narrava a história de Obaluaê: a rejeição e a adoção de uma pessoa, presente na narrativa do orixá, era o caminho criativo a ser seguido. "É a busca pela cura de algo que parece ser inalcançável, por isso que não há nenhuma relação com a covid, que já é combatida por uma vacina", diz ela.
Essa persistência, baseada na fé tanto religiosa como na ciência, vem movendo Deborah nos últimos anos, especialmente em viagens aos Estados Unidos onde se encontrou com pais cujos filhos têm os mesmos sintomas que Theo.
<b>UNINDO FIOS</b>
Com o espírito preparado e o motor criativo em pleno funcionamento, Deborah foi juntando os fios que bordam o espetáculo – Bonder, por exemplo, já na condição de responsável pela dramaturgia, baseou-se nos Salmos de Davi, especialmente os que expressam o desejo de salvação do homem diante da precariedade e das incertezas da vida. "Ele também me disse uma frase forte, a grande cura é a morte, o que me motivou a criar uma coreografia com dois bailarinos dançando ao som de You Want it Darker, canção de Leonard Cohen."
A trilha sonora, aliás, nasceu quando Deborah convidou Carlinhos Brown para compor o tema da abertura, com a narração de Theo. "Mas, quando ele me apresentou versos como traga meu sorriso para dentro e sou mais forte que minha dor, tive a certeza de que toda a trilha teria de ser composta por ele", conta a coreógrafa. Cura, portanto, honra batalhadores como Theo e o cientista britânico Stephen Hawking, que enfrentou uma doença degenerativa e viveu bem mais do que os três anos previstos pelos médicos.
Cura
Teatro Alfa
Rua Bento Branco de Andrade Filho, 722. 3ª a 6ª, 20h30. Sáb., 20h.
Dom., 18h. R$ 50 / R$ 200. Até 14/11
Estreia hoje (4).
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>