Daniel Munduruku é uma pessoa do presente. Não planeja muito as coisas, vai aproveitando as oportunidades. Aprendeu isso com o avô, que dizia que é preciso olhar para o hoje como o grande presente da vida (e também que devia ser persistente como o rio, que não para diante das dificuldades). E tem dado tudo certo para este escritor nascido em Belém em 1964, criado em aldeia mundurucu até os 9 anos, que foi, como tantas outras crianças indígenas que cresceram na ditadura militar, estudar na cidade, que sofreu bullying, foi chamado de selvagem, quase virou padre, se formou em filosofia, fez doutorado em Educação, foi professor e, graças a seu olhar atento, se tornou escritor. O primeiro escritor indígena a publicar livros para crianças não indígenas.
Era 1996, e ele, professor em São Paulo, tinha começado a contar, aqui e ali, as histórias que ouviu na infância quando uma menina perguntou em que livro ela podia ler aquilo. Descobriu que não tinha nada publicado, pensou que ele mesmo podia escrever e fez O Menino Que Não Sabia Sonhar. Mandou para 5 editoras, foi rejeitado por todas menos pela Companhia das Letrinhas, também novata à época, que respondeu que o texto era ruim, mas que a história era boa. A escritora Heloísa Prieto entrou na história, nos bastidores, Daniel criou outras coisas e nasceu Histórias de Índio.
“Pensei que esse era o único livro que eu ia escrever na vida, que já estava de bom tamanho, mas ele criou uma demanda na editora. Passei a ser convidado para muitas escolas para contar história e foram surgindo outras ideias de livros. Mas só me aceitei escritor no 20º lançamento”, conta Munduruku ao jornal O Estado de S. Paulo em passagem por São Paulo – ele vive em Lorena. Já são 23 anos de carreira, 52 livros publicados e 5 milhões de exemplares vendidos.
Daniel está com livro novo – agora, para adultos. Na verdade, está sendo lançada uma nova edição, mais simples e barata, e ainda sim bonita, da obra Das Coisas Que Aprendi – a primeira era acompanhada de um ensaio fotográfico. Sai pela UKA Editorial, do próprio escritor, e está à venda na Maraca, livraria online especializada em livros de autores indígenas.
“As pessoas sempre me perguntam como eu faço a ligação desses mundos – o indígena, do qual eu venho, e o não indígena, esse mundo tão confuso e conturbado no qual eu estou. O que aprendo de uma cultura e de outra. Eu quis fazer um livro com textos reflexivos que me ajudassem a criar uma ponte entre esses dois saberes”, diz Munduruku.
Com esses textos, ele quer mostrar também que só quando o Brasil aceitar sua história, sua origem indígena e negra, é que ele conseguirá amadurecer. “O mundo indígena, que é feito de um estar no mundo de uma forma muito simples, permite a gente não perder a nossa raiz. E seria muito bom que o ocidental, que o brasileiro, pudesse voltar para as suas raízes, para o que chamamos de ancestralidade”, diz. Ele afirma que todo seu esforço, neste livro em especial, é mostrar que esse caminho é necessário e urgente. “Para o Brasil se encontrar como nação, como povo, ele não pode abrir mão de sua ancestralidade.”
A literatura tem ajudado nesse reencontro e também na mudança da visão estereotipada acerca das populações indígenas, acredita. Munduruku foi o primeiro e é ainda o mais conhecido – estava na comitiva oficial quando o Brasil foi homenageado na Feira de Frankfurt, em 2013. Ele estima que outros 35 escritores indígena estejam produzindo e publicando sobretudo para crianças e jovens.
Esse caminho começou a ser aberto em 2003, quando ele recebeu menção honrosa no prêmio internacional Tolerância, da Unesco. No ano seguinte, convidado para o Salão Nacional do Livro Infantil e Juvenil, propôs um encontro de autores indígenas – e ele vem, desde então, propiciando o surgimento e a formação de novos autores.
A outra foi a Lei nº 11.645, de 2008, que incluiu a temática História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo das escolas. Com isso, vieram editais de compras de livros e houve um boom na literatura indígena. E então o governo parou de comprar livro, as editoras entraram em crise também pelos calotes das grandes livrarias, e pouca coisa com a temática indígena foi lançada no ano passado.
Mas Munduruku segue escrevendo, e tem dois livros no prelo da Melhoramentos (com Tiago Hakyi, Cristino Whapichana e Roni Wasiry) e da Edelbra. “A escrita serve para eu não esquecer de onde venho, não esquecer que não estou aqui só por mérito meu. Há toda uma história por trás disso, a história dos meus ancestrais que sofreram e foram perseguidos para dar a oportunidade de eu poder viver esse momento. Trabalho para que outras pessoas vivam isso e para que o brasileiro possa ter a oportunidade de ler o mundo de uma forma mais ampla”, diz o escritor reconhecido em 2018 com prêmio da Fundação Bunge pelo conjunto da obra – ele foi indicado por pessoas ligadas à academia e à cultura.
Trata-se de uma literatura que não tem uma missão, mas um compromisso, explica. “Esta é a minha forma de atuar dentro da sociedade, de fazer militância política.” Munduruku está atento aos movimentos do governo com relação aos povos indígenas, claro. Está preocupado e tranquilo ao mesmo tempo. “Aquilo que foi proposto nos anos 1970 está sendo proposto hoje. A única diferença, e é o que vai fazer a diferença, é que as populações indígenas estão muito mais conscientes do que antes. Nos últimos 30 anos, os povos indígenas experimentaram o fato, a realidade, a alegria de saberem que são pessoas de direitos.”
E completa: “Os 60 mil estudantes indígenas nas universidades viveram sob uma Constituição e sabem que podem se rebelar. Sabem que podem fazer frente a esse tipo de desmando, que não se pode aceitar simplesmente a mudança do sistema de saúde do indígena, por exemplo. O governo não pode fazer isso com uma canetada. Aliás, pode – mas vai sofrer as consequências de uma sociedade mais organizada”.
DAS COISAS QUE APRENDI
Autor: Daniel Munduruku
Editora: UKA (112 págs.; R$ 32; à venda no site da Livraria Maraca)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.