Mundo das Palavras

Desculpe, Caetano! É Alexandra. Não Quitéria

Quando Caetano Veloso chamou de “Maria Quitéria da guerrilha urbana” sua ex-colega na Faculdade de Filosofia, da UFBA – Maria de Lourdes Rego Melo – corrigiu uma enorme injustiça da vasta bibliografia sobre a Ditadura Militar. Valendo-se da importância de que desfruta na cultura brasileira, o artista tirou da obscuridade alguém quase inteiramente ignorada até mesmo nos ensaios dedicados às mulheres que enfrentaram os militares com armas. Caetano escreveu sobre Lurdinha – como a trata – um artigo inteiro publicado por “O Globo”, num contraste com as poucas linhas nas quais ela surge nesta bibliografia, só como testemunha da morte de Joaquim Câmara Ferreira, líder da ALN.
 
O depoimento Caetano deu sem ter podido acompanhar de perto o período mais dramático da atuação de Lurdinha. Estava preso e, depois, foi exilado. Naquilo que escreveu, ele levou em conta uma fonte inquestionável: o próprio carrasco de Lurdinha, Sergio Fleury. O famigerado delegado torturador admitiu, numa reportagem da Revista Realidade, não ter conseguido extrair dela nenhuma informação importante sobre Joaquim, inimigo número um da Ditadura, naquele momento. Fleury, na verdade, quis se auto-elogiar, como se fosse um tirano condescente. Pois, em seguida, assegurou, mesmo sem as informações que buscara, ia “deixar em paz” Lurdinha, porque soubera que ela tinha preferido continuar prisioneira no Brasil, a gozar de liberdade, no Exterior. Ela havia sido incluída na lista de presos políticos que, por exigência da VPR -Vanguarda Popular Revolucionária, teriam de ser soltos e enviados para o Exterior para que o embaixador suíço Giovanni Bucher, capturado por aquela organização, coirmã da ALN, fosse liberado. E recusou o privilégio.
 
Àquela altura, como ela própria contou para Milene Hebling, a única acadêmica que deu atenção à sua trajetória, Lurdinha havia milagrosamente atravessado mais de sessenta dias de torturas brutais, entrando em estado de coma, várias vezes. 
 
Na reportagem, Caetano, exilado em Londres, percebeu a lealdade de Lurdinha à sua causa, a da Justiça Social. Mas, não registrou a personificação daquela causa em Joaquim. Como poderia saber que Joaquim e Lurdinha não eram apenas companheiros na ALN? Os dois viviam juntos, clandestinos. Ele forçado a se distanciar da mulher e dos filhos, para não colocá-los em risco. Ela, num interregno da relação duradoura que manteria com o artista plástico Humberto Vellame – também alcançado pela repressão política, e, igualmente envolvido em outra ligação amorosa.
 
Caetano, portanto, que nos desculpe. Mas, ao comparar Lurdinha com uma personagem histórica, ele poderia ter deixado de lado o Soldado Medeiros, como era chamada Maria Quitéria de Jesus, patrona do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro. E lembrado da mitológica russa Alexandra Kollontai. Ela, sim, musa da diversidade de amores que movem a pessoa rebelde e revolucionária.
 
(Na ilustração: foto de Alexandra Kollontai, inspiradora de amores e instintos em tempo revolucionários)

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