Alejandro Santander chorava. Uma mulher lhe ofereceu ajuda. Tomou um copo de água e coragem para se levantar do banco e caminhar até a nave central. Postou-se diante do caixão do homem que lhe salvara a vida. Ergueu o punho cerrado e o saudou em silêncio. Somente a ladainha de uns poucos fiéis se ouvia na catedral. “Senhor, tende piedade de nós; Cristo, tende piedade de nós.” Alejandro ajoelhou-se. O punho manteve fechado. E no alto. Tudo o que era devia àquele homem, repetia. Quando escapou da morte no Chile e chegou a São Paulo há 38 anos, fora ele quem o acolhera. Se tinha mulher, quatro filhos e oito netos, todos brasileiros, era porque ele o recebera com o “sorriso da esperança”. Por isso, saiu de casa e apanhou um ônibus para se despedir do homem que lhe ensinou a “voltar a crer na Igreja”. Alejandro era o único que chorava na imensa madrugada daquela catedral quase vazia.
Militante do Partido Socialista chileno, ele deixara sozinho o país sob a ameaça da ditadura de Augusto Pinochet. Eram os anos da Operação Condor, criada pelas ditaduras do cone sul para capturar e matar oposicionistas. Socialistas e outros marxistas chilenos buscaram então refúgio no Brasil, que vivia o estertor de seu regime militar. “Dom Paulo nos recebeu de braços abertos e nos dizia que nunca devíamos desesperar. Ele me ensinou que socialismo e cristianismo podem andar juntos.” Alejandro chegara à igreja no começo da missa das 23h30, celebrada pelo bispo-auxiliar d. Luiz Carlos Dias. Era a terceira da noite em memória do cardeal d. Paulo Evaristo Arns, o homem que o salvara.
Uma garoa fria envolvia a noite. Luzes saíam do interior da catedral e cortavam a escuridão do entorno. Isaac da Silva, de 54 anos, negro e morador de rua, caminhava em direção à Praça João Mendes. Levava um carrinho com suas coisas e parava quem passava com um pedido: queria pão. Há vinte anos nas ruas do centro, não entendia a razão daquele alvoroço na região, tantos carros chegando e saindo e tanta polícia na rua. “Ué, morreu o padre é? Vixe, ele ajudava muito a gente.”
Isaac apanhou as moedas que um homem lhe deu e seguiu adiante em sua caminhada.
Ao pé da escadaria da Sé, o subtenente Adilson da Silva Ribeiro comandava o pelotão do 7º Batalhão da Polícia Militar que vigiava a entrada da catedral.
“Está tudo calmo”, repetia o policial. Nada, nenhuma ocorrência perturbara a paz naquele região do centro. Nenhum punguista, assaltante ou trombada. Nada de novo. Na entrada da igreja, um mulato de camisa amarela amarrotada ouvia o começo da Liturgia Eucarística. “O senhor é convosco” e repetia. “Ele está no meio de nós”.
Entrou no prédio e sentou-se no último banco, o mais próximo da porta. Qual o seu nome? “Máscara. Sou o Máscara, pois quem me pergunta tem que dizer seu nome primeiro, pois Deus já me conhece.” Máscara permaneceu ali, olhos fixos no altar enquanto d. Luiz Carlos rezava. A noite escura o envolvia no dia da morte de d. Paulo, o mesmo 14 de dezembro que levara há 500 anos o carmelita espanhol São João da Cruz.
Nos bancos, havia 63 pessoas, duas das quais dormiam durante a celebração. A maioria se concentrava, como Alejandro, nas proximidades do altar. Entre eles estava o administrador Ivanildo Martins, de 51 anos, que trabalha há 20 na Cúria Metropolitana. Acompanhado pela mulher Isabel, de 51 anos, e pelo filho Raphael, de 26, ele também foi se despedir de d. Paulo. Enquanto d. Luiz Carlos distribuía as hóstias, os 11 padres que o ajudavam no altar começaram a cantar: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.” A Oração de São Francisco de Assis emocionou Alejandro.
O chileno só se moveu do banco ao término da missa. Só então, tomou coragem, com a igreja já quase vazia, de se levantar e se despedir de d. Paulo. “Mais do que um homem, ele era um santo.” Após saudá-lo com o punho cerrado, à moda antifascista, Alejandro recebeu um abraço. “Não, eu não o conheço, mas ele tocou no meu coração. Foi um abraço de conforto, que a gente dá quando perde um amigo”, disse o morador de rua Gilson Ferraz dos Santos,de 38 anos, outro amigo de d. Paulo. “Eu o conheci na missão Belém”. A guarda do Regimento de Cavalaria, postada ao lado do caixão de d. Paulo, se movimentou com a precisão que só os militares sabem dar aos momentos solenes. Entraram dois homens e saíram os que observavam até ali, impassíveis, as manifestações de quem se aproximava do corpo. Gilson abraçou novamente Alejandro e rumou em direção à saída central. Cruzou com dois homem que chegavam no meio da noite. Já era mais de 1 hora. “Esse aí ajudou muito morador de rua”, disse um dos homens para o companheiro, que parecia alcoolizado. Este, ao perceber que era observado, perguntou: “Algum problema?” E seguiu em direção ao altar, onde estava o caixão de d. Paulo. Pelo caminho, cruzaram com Alejandro, que permanecia triste, agora, sentado em um dos bancos. “Perdi os dois homens mais importantes da minha vida: Fidel e d. Paulo.”
Não sabia quando voltaria para casa. Queria ficar ali até o enterro do homem que o salvara. Era tarde. Tão tarde, que Gilson acabou por sair da igreja iluminada e deitou na escuridão diante da porta da catedral. Sem travesseiro, cobertor ou qualquer proteção. Em minutos, roncava enquanto baratas subiam pela escadaria. Três padres conversavam ali perto. Aguardavam a próxima missa. Era o povo de d. Paulo que velava seu corpo na imensa madrugada da catedral.