A Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Santa Isabel despertou com um trovão. Um grave forte e cheio de vibratos clamando por Conceição, a mulher que nos anos 50 vivia no morro a sonhar com coisas que o morro não tem. Alguns pacientes acordaram, enfermeiros sorriram e os médicos entraram logo depois, aplaudindo o cantor com a boa notícia. A força de Conceição, evocada na UTI de um hospital, era sinal de que Cauby Peixoto, o homem que a canta há quase 60 anos, estava pronto para voltar à luta.
Cauby, 84 anos, passava por uma internação para se recuperar dos descontroles de sua diabete. Mesmo em condições delicadas, cantou no quarto e durante os dias mais tensos de UTI Conceição e Arrastão. Em uma tarde de visitas, virou-se para seu produtor, Thiago Marques, desafiando a natureza dos homens de sua idade e cutucando o destino com vara curta: “Agora, eu quero gravar um disco de bossa nova”. Às 18h de quarta-feira, 20, ele esperava o repórter do jornal O Estado de S.Paulo devidamente paramentado na recepção do Estúdio Sambatá, na Vila Madalena. Havia acabado de colocar as primeiras vozes no disco A Bossa Moderna de Cauby.
A agenda de Cauby Peixoto atropela a de seus produtores. Seus discos se sobrepõem uns aos outros como se o mundo tivesse as horas contadas e seus shows só são suspensos por ordens médicas. Nos últimos dez anos foram oito CDs e três DVDs lançados. E uma temporada no Bar Brahma, prevista para durar um mês, ficou na casa por espetaculares 12 anos.
O que o espera agora, além do álbum de bossa nova, não é pouco. Cauby Canta Nat King Cole, um desejo antigo que ganha forma no ano em que se completam cinco décadas sem Cole, sai antes de tudo. Ele retoma canções como Unforgettable, When I Fall in Love e Smile, prestando tributo ao homem que, um dia, se emocionou com sua voz. “Fui convidado por ele para cantarmos em Nova York. Foi uma grande noite.”
A semana que vem terá duas estreias em seu nome. Na segunda-feira, 25, ele retorna ao palco do Bar Brahma, às 22h, com canções que relaciona como as que mais gosta de cantar (nem sempre aparecem todas na mesma apresentação): Bastidores; Conceição; Eu Sei Que Vou te Amar; New York, New York; e Evergreen, entre muitas outras. E quinta-feira, 28, estreia o documentário Cauby – Começaria Tudo Outra Vez, com direção de Nelson Hoineff.
Cauby fala em poucas palavras. Sorri o tempo todo e jamais aparece sem as roupas brilhantes que aprendeu a usar nos tempos em que era administrado pelo empresário Edson Colaço Veras, o Di Veras. “O artista deve se apresentar da melhor forma possível para seu público, qualquer público. E o público prefere o Cauby assim, com luzes. Eu faço o que os fãs querem”, diz. Di Veras é um nome polêmico em sua trajetória, como retrata o documentário de Hoineff. Alguns pares, como Agnaldo Timóteo, dizem que Cauby, por tudo o que fez, deveria ter ganhado mais dos shows que fez sob seu comando. Mas ao mesmo tempo, o próprio cantor reconhece o tanto que aprendeu com o ex-empresário. “Eu não tinha prática de me colocar como um cantor. Foi ele quem me orientou a fazer tudo.”
Suas memórias, embora expressas em pílulas, estão em boa forma. Ele cita como a mais emocionante apresentação que já fez uma noite em que foi convidado a cantar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro pelo pianista Wagner Tiso, um projeto chamado Wagner Tiso – Um Som Imaginário 60 Anos. Cantou A Flor e o Cais, feita pelo compositor especialmente para o homem que o ajudou no início da carreira.
Sua voz segue ativa em um processo curioso de envelhecimento útil. Os graves chegaram para dar uma cor que não existia ali. Sua força migrou das regiões mais altas, onde habitava um vibrato de respiração longa, para as médias e baixas, nas quais ele pode trabalhar mais a dinâmica dos volumes pianíssimos que gosta de contrastar com as explosões. Os agudos, ao mesmo tempo, não desapareceram e, ao contrário de outros octogenários, o passar dos anos não o obrigou a baixar as tonalidades originais. Com o grave, seu timbre mudou e seus recursos aumentaram mesmo em contextos difíceis, como no dia em que fez Conceição comover uma ala inteira de hospital. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.