Djonga mistura ética e estética em Histórias da minha área

Pelo quarto ano seguido, no dia 13 de março, chegou aos serviços de streaming um disco novo do rapper mineiro Gustavo Pereira Marques, conhecido em todos os rincões do hip hop, da internet às ruas, como Djonga. Em 2020, foi Histórias da Minha Área – no gênero que Djonga opera, as raízes criadas com a região onde um artista nasceu, a família que o criou e os amigos que cercaram seus primeiros desenvolvimentos são elementos fundamentais para a prática estética, mas que encontram na ética das relações seu valor mais elevado. Manter-se apegado a essa ideia é muitas vezes o diferencial de um rapper: esse disco, portanto, ganha ainda mais importância ao mesmo tempo que denuncia de maneira incisiva o contínuo assassinato de jovens, principalmente negros, nas periferias de todo o Brasil.

Afinal, como ele mesmo avisa aqui: "Você só vai ser o maior do Brasil depois que for o maior da sua rua".

Recapitulando: em 2017, Heresia já havia colocado Djonga como um dos jovens destaques da cena do rap nacional, um artista então com 22 anos, flow (o jeito de cantar as rimas) gritado e letras e rimas espertas para o padrão vigente. No ano seguinte, O Menino Que Queria Ser Deus ampliou o repertório de um artista que já demonstrava a virtude de variar a própria exploração artística, além de promover outros jovens músicos junto com ele. Em 2019, veio Ladrão, e o grande estouro: foram cerca de 16 shows por mês, aparições em diversos festivais em horários de destaque, entrevistas em todos os cantos, prêmios.

Em Histórias da Minha Área, lançado no momento imediatamente anterior à pandemia chegar de fato ao Brasil, Djonga olha para a origem urbana e periférica de diversos pontos de vista. Nas letras, explica que "Enquanto não houver justiça pra nós / Juro que pra vocês não vai ter paz": o discurso ganha profundidade quando ele afirma em seguida que "Parei de pensar em matar, vingança vai ser ficar vivo", em Não Sei Rezar.

Em Oto Patamá, referência clara ao bordão do atacante Bruno Henrique, do Flamengo, Djonga canta "olha ali no beco a cor do que morreu / O raio caiu de novo no mesmo lugar", fazendo um trocadilho com a própria produção artística para falar ao mesmo tempo sobre violência social e racismo.

"Meu alvo nesse disco era fazer a gente não ser mais o alvo", diz Djonga por telefone. "Dar voz a quem não tem voz no debate. A galera intelectual faz isso, tem grana e espaço para veicular suas ideias, mas o debate (sobre racismo e desigualdade social) é sempre o mesmo. O alvo é colocar o debate na nossa voz."

Em Gelo, ele chama o carioca NGC Borges, estrela na internet com o hit AK do Flamengo, um dos destaques de uma nova vertente do trap brasileiro, o trap proibidão (o trap é um gênero do hip hop que abusa de batidas graves e espaçadas, e o proibidão é a derivação do funk que traz assuntos como sexo e violência sem freios na linguagem). Borges produz vídeos em favelas do Rio, e nos seus clipes e letras há referências diretas a violência social. Na canção com Djonga, ele diz: "A Glock quando canta sempre assina mais um hit / Saudades dos meus manos que não passaram dos 15".

Quando Borges se envolveu nos últimos dias numa "treta" online com um PM youtuber, teve dados seus e da sua família revelados e recebeu ameaças de morte, Djonga tuitou: "Ainda que não concordem com o que ele faz, o trampo dele é sobre realidade, fala sobre violência através de arte assim como os filmes de Hollywood ou os Cidade de Deus que vocês curtem".

Toda essa reflexão perpassa Histórias da Minha Área. "E se eu falar da minha área, como não vou falar de funk?", se pergunta o próprio Djonga. O gênero mais popular das quebradas do Brasil é materializado no disco em diversos momentos, mas especialmente com a participação de MC Don Juan na faixa Mania. "Essa parceria é fundamental para calcificar o trampo", diz Djonga, que no passado já se uniu a outros artistas do gênero, como MC Rogê, WC no Beat, MC Rebecca e MC Rick.

"De um modo geral, as preocupações (do rap e do funk) são as mesmas, mas, claro, existem especificidades. Como o assunto é arte, é fácil se comunicar. A galera do funk tem um jeito diferente de produzir. Não tem o costume de fazer dobra na música, por exemplo", explica, falando sobre a prática de sobrepor outra voz ou instrumento a uma parte previamente gravada. "O funk é mais intuitivo, eles fazem mais rápido, é uma diferença que agrega para c* na hora da produção."

Entre "papos retos" e citações diversas, de Dom Quixote a O Poderoso Chefão, passando por Cazuza, Raul Seixas, 2Pac, Harry Potter e a Bíblia, Djonga monta um quebra-cabeças único na música brasileira contemporânea. No novo disco, oferece, gentil e incisivo, mais algumas peças.

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