Foi em 1948 que Edith Piaf (1915-1963) presenteou Charles Aznavour (1924-2018) com um objeto que se tornaria essencial na vida dele: uma câmera de Super 8. Naquela época, Piaf já gravara La Vie en Rose, um de seus maiores sucessos, enquanto Aznavour afiava a voz para a série de sucessos que emendaria nas décadas seguintes. A câmera, no entanto, tornou-se um bem particular, que poucos conheciam. Até o dia em que o cantor mostrou o material que capturou ao longo de 34 anos para um amigo, o cineasta Marc di Domenico. Ele, impressionado com a riqueza das imagens, preparou um documentário, Aznavour por Charles, que estreia nesta quinta, 11, nos cinemas.
São 83 minutos de puro deleite – até 1982, Aznavour filmou rolos e rolos de negativos que se tornaram um autêntico diário, com registros dos momentos que cercavam a sua vida, como viagens, concertos, amantes, amigos, tédio. Alguns meses antes de morrer, em outubro de 2018, ele revelou a Domenico seu desejo de utilizar aquele material em um filme.
"Descobri a existência desse acervo quando passava férias com Charles, em 2016", conta Domenico ao <b>Estadão</b>, em uma entrevista por e-mail. "Assistíamos a filmes todas as noites, buscávamos a filmografia de diferentes diretores. Foi quando ele me disse que não só atuou em vários longas, como também filmou pessoas e eventos, de uma forma regular. Charles então decidiu me apresentar ao seu trabalho, que eu não esperava que tivesse tamanha qualidade e sensibilidade."
Aznavour construiu uma carreira de 70 anos, com mais de 1,4 mil canções escritas e participação em mais de 60 filmes. Mantinha-se atuante até os últimos dias e sua morte, portanto, causou espanto. E, se viveu em meio a celebridades, o foco de sua câmera buscava justamente os rostos anônimos, desde fãs que faziam fila na porta do teatro para vê-lo até meninos jogando futebol em um campo de terra batida.
"Era esse o propósito do documentário: mostrar o seu ponto de vista como homem e não estrela. Ele captura a natureza humana, não as aparências. Charles filma ruas movimentadas, agitados passeios de barco e, mesmo assim, ele transparece através do que escolheu retratar", observa Domenico.
O cineasta conta que Aznavour não participou da escolha dos textos que pontuam as imagens do documentário – segundo ele, as falas foram pinçadas de cinco biografias de Charles Aznavour e também das principais entrevistas concedidas por ele desde 1950. "Era a forma para que o personagem Charles pudesse despontar por meio das imagens de uma forma mais perfeita."
Para dar voz aos pensamentos de Aznavour, Domenico e o filho do cantor, Misha, convidaram o ator Romain Duris. "Misha sempre achou que eles tinham uma energia semelhante. Romain também aceitou imediatamente e tudo correu muito bem, ele conseguiu dar uma interpretação muito sensível e precisa da mentalidade de Charles", explica Domenico.
É preciso sempre lembrar que o cantor deixou uma marca indelével na cultura pop do século 20. Como uma radiografia, as letras de suas canções descreveram a vida boêmia, os sonhos de juventude, a vida de artista aspirante, a fome que a acompanhava, o sexo, os amores perdidos e conquistados, as paixões.
Ao longo dos anos, de uma forma discreta mas sempre presente, Aznavour emendou grandes sucessos como La Bohème, Emmenez-moi, Hier Encore, She e For me, Formidable, invadindo o imaginário dos fãs, inclusive no Brasil, onde se apresentou diversas vezes e para onde planejava voltar para mais um show.
E, mesmo diante de tanta exposição, as imagens de Aznavour por Charles surpreendem. "Embora não deixe de ser autobiográfico, pois são documentos de momentos presenciados por ele, o conjunto de filmes feitos por Charles oferece uma visão poderosa e original sobre ele mesmo", observa Domenico. "Essas imagens nunca são superficiais, as escolhas que ele faz no enquadramento nunca nascem sem ser pensadas. E ele surge despretensioso e extremamente apegado à essência humana."
De fato, o que transparece nas imagens captadas pelo músico é uma enorme humanidade, especialmente no olhar dedicado aos momentos cotidianos, ao trabalho dos anônimos, e também ao descanso em meio à família. Quando o cantor aparece no quadro, acontece o que um crítico francês identificou com exatidão: a alteridade se impõe à notoriedade.
Suas canções se tornaram conhecidas por apresentarem ritmo, contratempos, velocidade. Aznavour conferia ainda uma sofisticação popular, por mais que isso soe como contrassenso. No filme, porém, a modéstia se revela nas imagens, na dor pelo filho perdido, na nostalgia reforçada pela granulação típica de filmes de Super 8.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>