Apesar da saúde debilitada, Mikhail Gorbachev pediu um último encontro com Werner Herzog, em abril do ano passado, antes que o cineasta alemão finalizasse o documentário sobre sua vida. “Ele chegou de ambulância, vindo diretamente do hospital. O curativo em sua mão esquerda mostra o local onde estava o cateter”, conta Herzog, diretor de Encontrando Gorbachev, em parceria com o inglês Andre Singer.
O esforço do último líder da União Soviética foi um sinal da necessidade de Gorbachev, atualmente com 88 anos, de passar a sua história a limpo. É justamente isso que a dupla de cineastas encoraja o ex-governante a fazer ao longo de 92 minutos de filme, uma das atrações deste sábado, 6, na 24ª edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em São Paulo.
“Na Rússia, as pessoas ainda dizem que foi Gorbachev quem destruiu a URSS. Ironicamente, ele nunca quis isso. Além de alguns líderes de outras repúblicas, quem mais queria a dissolução era Boris Yeltsin”, diz Singer, referindo-se ao então presidente da Rússia. “Infelizmente, nunca saberemos o que poderia ter acontecido, se Gorbachev tivesse conseguido manter a aliança”, completa o diretor.
Quem aparece no filme, conversando com o ex-estadista, é Herzog, que não esconde a sua admiração por Gorbachev, tanto nas questões que levanta como na narração que faz, para amarrar o documentário. A um dado momento, o diretor pergunta como o entrevistado se sente quando recorda o fim da URSS, declarado em 26 de dezembro de 1991, no dia seguinte à renúncia de Gorbachev.
“Eu lamento isso até hoje. É um conflito interno”, confessa o ex-líder, que aparentemente renunciou por não ver outra saída. Na época, um golpe militar malsucedido, arquitetado pela ala conservadora, abriu as portas para o grupo de liberais liderado por Yeltsin, o que acelerou a declaração de independência de países como Letônia, Estônia e Lituânia. O próprio Gorbachev conta que, quando lhe perguntam por que ele não impediu que isso acontecesse, ele responde que “era como bater a cabeça contra uma parede de tijolos”.
“Em vez de dissolver a União, deveríamos ter dado às repúblicas mais direitos”, afirma Gorbachev, lembrando que isso não foi possível por haver “pessoas apressadas e imprudentes”, como Yeltsin, pelo caminho. “Elas queriam tomar o poder e tinham planos próprios. Eu provavelmente deveria ter agido diferentemente como Yeltsin, enviando-o a algum lugar”, comenta ele.
Para Herzog, parte da “deturpação” da imagem de Gorbachev é culpa da mídia. “Quando Vladimir Putin (o atual presidente da Rússia) chamou o colapso da União Soviética de a maior tragédia geopolítica do século 20, os veículos de comunicação, sobretudo no Ocidente, logo concluíram que ele queria o império de volta.” Ninguém deu atenção, segundo o cineasta, à segunda parte da sua declaração, em que Putin explica por que foi um desastre. “Porque mais de 10 milhões de russos se encontraram, da noite para o dia, fora de seu país”, relembra Herzog.
Toda a trajetória de Gorbachev é revisitada com as memórias do próprio, além de trechos de imagens de arquivo e testemunhos de figuras-chave. Entre elas o ex-primeiro-ministro da Hungria Miklós Németh e Horst Teltschik, ex-conselheiro de segurança nacional para Helmut Kohl, ex-chanceler da Alemanha.
Com reapresentação em São Paulo no dia 10 e exibição no Rio de Janeiro no dia 13, o documentário também resgata a infância de Gorbachev, o casamento com Raíssa, sua visão política e seus principais feitos. O próprio Gorbachev tem a chance de apontar o que deixou de significativo em seu legado.
“A Perestroika (a política de reestruturação que permitiu a abertura econômica na União Soviética) pôs um ponto final à Guerra Fria”, conta, acrescentando que ele também começou o processo de desarmamento e fez progresso no sentido de implementar uma democracia. Mas, como Gorbachev mesmo diz, não foi possível terminar o seu trabalho, já que “certas forças assumiram o poder.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.