Há 11 anos, Jon Nguyen já havia feito um primeiro documentário sobre David Lynch, acompanhando-o durante o processo de criação de Império dos Sonhos. Nguyen volta agora a seu tema preferido, armando um puzzle (quebra-cabeças) para tentar decifrar o enigma. Não o faz sozinho. Acompanham-no, em David Lynch – A Vida de Um Artista, Olivia Neergaard-Holm e Rick Barnes. O trio tenta responder à pergunta que muito cinéfilo já deve ter-se feito. Quem é esse homem, esse artista que, há quase 40 anos – Eraserhead é de 1978 -, virou objeto de um culto? O que define o estilo lynchiano? E de que maneira seus múltiplos talentos – músico, pintor, designer de móveis, cineasta – interagem, internamente?
O primeiro desafio de Nguyen e seus amigos foi convencer David Lynch a aceitar ser objeto de estudo. Ele o convenceu dizendo que o filme seria um documento para que sua filha mais nova vive/ouvisse o pai, de viva voz, abrindo-se sobre sua vida e obra. David faz um autorretrato idílico da própria infância e admite (revela?) quanto foram turbulentos os anos de adolescência, em que andou metido em más companhias. A mãe é uma referência mítica. Já o pai… Lynch Sr. foi visitar o filho no porão em que residia, nos tempos de estudante. Encontrou restos de pequenos animais que o jovem David usava em suas experiências. Era cruel, o garoto. Papai sugere que não tenha filhos.
Senão propriamente a crueldade, a bizarrice faz parte do universo de Lynch. Transparece em Twin Peaks e no seu retorno a Twin Peaks, atualmente no ar – e contemporâneo de A Vida de Um Artista. Foram anos de conversas – três – e Nguyen, Neergaard-Holm e Barnes devassam a intimidade do ateliê em que Lynch exerce seu ofício de pintor. Mais do que curioso, é intrigante vê-lo pintar. Mais de um crítico o filia à vertente do figurativo anglo-irlandês Francis Bacon, homônimo – e descendente – do filósofo elisabetiano. Bacon é frequentemente grotesco. Cria obras muitas vezes definidas como pesadelos. Lynch é surreal. Império dos Sonhos não recebeu esse título no Brasil por acaso. No original, é Inland Empire. Muitos críticos gostam de dizer que Lynch filma seus sonhos. Mas há uma lógica implacável nesses sonhos filmados, e é o que talvez diferencie David Lynch dos surrealistas.
Ele nasceu em 1946 e formou-se na Escola de Belas Artes da Pensilvânia. Em seu Dicionário de Cinema, Jean Tulard resume – “Estreou com curtas-metragens, nos quais utilizava os procedimentos de animação. Seu gosto pelo cinema experimental pode ser visto em Eraserhead, sobre as relações de um homem com um horrível feto.” Justamente Eraserhead. O filme aborda os anos de formação e os múltiplos talentos de David até esse filme. E, embora tenha sido o começo de uma obra que prosseguiu através de O Homem-Elefante, Veludo Azul, Coração Selvagem, História Real, Cidade dos Sonhos, Império dos Sonhos, etc., o documentário ignora esse Lynch posterior. Eraserhead fica sendo o limite.
Seria interessante trazer o debate até Twin Peaks – O Retorno, que não repete o sucesso massivo do original, mas recebeu elogios pontuais do tipo “o acontecimento da década na televisão”. É, de qualquer maneira, uma viagem fascinante – pela vida e pela obra. Mas se o objetivo fosse completar um quebra-cabeças, Nguyen e seus parceiros teriam falhado. Sabemos muita coisa sobre Lynch no fim da projeção, e quase tudo vem do discurso do próprio autor. Ele fala, fala e a imagem de arquivo – fotos, pinturas – está ali quase como um acessório, para compor um filme doméstico. Nesse processo, algo escapou. Raros momentos o mostram na intimidade com seus entes queridos, e são justamente os que desestabilizam o retrato. Pegando carona no título do filme que dirigiu a filha do cineasta – Encaixotando Helena, de Jennifer Lynch -, é impossível encaixotar Lynch. O mistério permanece, e é o que faz dele um artista. Decifrado, ficaria banal. É melhor que continue sendo um coração selvagem.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.