Começa com uma declaração do próprio David Bowie. "Deus está morto, e quem o matou foi o homem, para assumir seu lugar. Mas se a criação de Deus é imperfeita, mais ainda será a do homem. Como preencher o vazio, e mais que isso, qual é o sentido da vida?" Durante muito tempo, Bowie parece ter sido consumido por essa indagação fundamental. Ela atravessa o filme de Brett Morgen que estreia nesta quinta, 15, nos cinemas. Pode ser visto em Imax. Moonage Daydream se propõe ser uma experiência audiovisual. Talvez seja um pouco longo, quase duas horas e meia de duração, mas é certamente um espetáculo deslumbrante.
Morgen já biografou Kurt Cobain. É atraído pelo universo da música – do rock – e por certos destinos excepcionais. Se fosse possível aplicar a teoria da cebola ao filme, a conclusão seria óbvia. Moonage Daydream possui camadas e camadas. Bowie inicia o filme como um enigma, uma esfinge. "Decifra-me ou te devoro." Masculino/feminino, yin/yang. Ao apresentador que lhe pergunta sobre as mutações, Bowie usa maquiagem e roupas extravagantes para se destacar na multidão? O artista oferece uma resposta mais complexa. No mundo massificado, está afirmando a individualidade. O que importa é o indivíduo. E os sapatos de plataforma, são de homem ou mulher? "São só sapatos, tolinho", diz Bowie.
<b>IDENTIDADE</b>
Bowie foi pioneiro na afirmação da identidade. Pode não ter inventado a questão LGBTQ+, mas com certeza contribuiu para uma afirmação identitária em nível global. Em um show, o fã explica: "Não é preciso ser bicha para usar maquiagem". Em sucessivas entrevistas, Bowie não foge nunca às perguntas que tentam devassar sua identidade. Um dos momentos mais reveladores – o mais? – é quando fala sobre o meio-irmão, Terry, visceral em sua formação. Abriu sua cabeça ao lhe dar o livro de Jack Kerouac, On the Road. Terry sumia por temporadas. Um dia voltou com o diagnóstico de esquizofrenia. Ele virou seu pesadelo: e se sua busca o levasse à insanidade?
Moonage Daydream é uma explosão – de imagens, sons, ideias. Em cena, Bowie está sempre mudando, se reinventando, para descobrir quem é. Aos 33 anos, ele afirma não ter certeza de nada. Aos 35, acha que chegou a um certo equilíbrio. Aos 45, fez a grande descoberta. A vida é muito curta para ser desperdiçada. Ele não quer perder nem um só dia sequer. Lança-se em turnês pela Inglaterra e pelo Oriente. Seus críticos reclamam – os tempos de ousadia ficaram para trás. Bowie oferece o que seu público espera dele. Ele contesta. Sempre fez o que quis, sem se preocupar em satisfazer os outros. Mas era contraditório.
Crescido numa família sem amor, na qual os pais eram incapazes de manifestar carinho, ele canta o amor sem senti-lo. Nega os relacionamentos. A chegada de Iman a sua vida vai mudar tudo isso.
Fez filmes importantes, marcantes – O Homem Que Caiu na Terra, de Nicolas Roeg, Fome de Amor, de Tony Scott, Furyo, Em Nome da Honra, de Nagisa Oshima, etc. O cinema é parte importante de sua vida e obra. Ajudou-o a definir quem é. São muitas as citações a Luis Buñuel, Ingmar Bergman, Stanley Kubrick, Fred e Ginger. Uma metáfora é muito interessante. Sempre que Bowie tenta se explicar, a câmera avança rumo a uma parede. No way out, sem saída. Quando ele se assume – como entertainer, como homem casado -, o corredor leva a um elevador. A porta se fecha sobre ele. Bowie encerrado numa caixa? Sem que se possa falar em influência, pode dizer-se que Brett Morgen e o próprio Bowie viram Pink Floyd em The Wall, de 1982. A ópera-rock de Alan Parker conta a história de um músico em crise, que trafega entre passado e presente.
Projetado no futuro, reflete sobre o desenvolvimento do fascismo. Bowie faz sua análise da direita e do que é necessário para tentar superá-la, um tema atual que Brett Morgen aborda com vigor crítico.
Ao <i>The New York Times</i>, o diretor disse que nunca imaginou Moonage Daydream como um documentário tradicional, mas uma experiência imersiva. Após oito meses trabalhando no roteiro, ele voou para Albuquerque, no Novo México, onde Bowie filmou a fantasia científica de Nic Roeg. Levou uma cópia de O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell. "Comecei a pensar na Ilíada, e foi a bússola para entender a jornada de David. Não tão dissimilar, mas esse homem viveu criando tempestades para ele mesmo." Nada define melhor o filme que fez.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>