Estadão

Documentário revisita vida dupla de Cabo Anselmo

Quase 60 anos depois, José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, é ainda um enigma. A figura do ex-marinheiro que entregou companheiros de luta armada em troca de sua vida ao fechar um acordo com o delegado Sérgio Paranhos Fleury é um álibi atrás do qual parte da esquerda brasileira escondeu seus erros? Ou ele já era um agente provocador em 1964? Quais as mentiras que a narrativa do maior traidor da esquerda na ditadura militar esconde?

O documentário Em Busca de Anselmo, que estreou na terça-feira, dia 12, na HBO, joga luz nos episódios mais controversos da vida do líder da revolta dos marinheiros, na véspera da deposição do presidente João Goulart. "Todas as suspeitas em relação a Anselmo, que nem sequer era cabo da Marinha, são válidas. Ele construiu a própria jornada e identidade de maneira confusa e nada confiável", afirmou Carlos Alberto Junior, o idealizador do projeto, diretor e roteirista da série.

A série entrevistou Anselmo dezenas de vezes. Também ouviu mais de 50 pessoas que conviveram com ele – da infância à morte, em 15 de março. O principal dos mistérios é quando ele começou a trabalhar para a polícia. Anselmo e os policiais do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) dizem que isso só aconteceu em 1971. É também a opinião da maioria dos marujos que conviveram com ele na Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais.

Por essa narrativa, transformar Anselmo em agente provocador já em 1964 diminuiria os pecados de quem buliu com a indisciplina nos quartéis, provocando a adesão de parte das Forças Armadas ao golpe.

<b>ESTOPIM</b>

Em 25 de março de 1964, Anselmo estava no Palácio do Aço, a sede do sindicato dos Metalúrgicos do Rio, onde falou para uma assembleia de mais de 2 mil marinheiros e fuzileiros, que se rebelaram contra a prisão de seus líderes. O discurso teria sido feito pelo PCB. O jornal Novos Rumos, uma publicação do partido, anunciava que a Nação estava com os marinheiros amotinados. Na redação, o jornalista Luiz Mário Gazzaneo testemunhou quando o dirigente comunista Giocondo Dias viu a primeira página e disse: "Dessa vez ou nós vamos para o poder ou para a cadeia".

A Marinha quis prender todos, mas não obteve o apoio do presidente Goulart. Seis dias depois, ele estava deposto. Na série, Anselmo voltou ao Palácio do Aço, e releu o discurso.

Levá-lo de volta aos lugares em que viveu sua história é um dos feitos do documentário – ele só se recusou a ir à Cuba, onde treinara guerrilha. O momento mais dramático é quando Anselmo retorna ao prédio do antigo Dops de São Paulo, hoje Memorial da Resistência. Ali conta como fechou o acordo com Fleury para mudar de lado e se transformar no doutor Kimble, o informante que destruiu a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

"A entrevista naquele local ajudou na reconstrução dos momentos em que ele passou sob custódia dos agentes da repressão", contou o diretor. Para ele, a trajetória de Anselmo "é obscura por si só". "Estamos diante de um dos personagens mais sombrios da ditadura."

O documentário explora ainda as histórias das vidas que cruzaram o caminho de Anselmo, concentrando-se nos seis militantes da VPR mortos no massacre da Chácara São Berto, em Pernambuco, em 1973. Entre eles estava Soledad Barrett Viedma, companheira de Anselmo, de quem estava grávida.

Depois da traição, o ex-marinheiro recebeu do Dops uma identidade falsa para fugir da vingança de antigos companheiros. Viveu clandestino quase 50 anos. E foi assim, com o nome de Alexandre da Silva Montenegro, que acabaria enterrado em 16 de março, em Jundiaí, no interior paulista.

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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