Robert Lepage é da espécie de artista que se entusiasma em entender a cultura de um povo dentro e fora de suas fronteiras. No momento atual, o dramaturgo, ator e cineasta canadense não fica chocado ao perceber que a palavra fronteira se tornou a principal preocupação dos EUA e de alguns países da Europa, inclusive do Brasil. “Parece que estamos esquecendo de eventos do passado. Isso faz com que o medo se espalhe”, alerta, em entrevista, por telefone.
Nesta quinta, 27, o artista de 60 anos desembarca no Sesc Pinheiros com 887, espetáculo que remonta algumas memórias de sua infância, ao lado de sua companhia Ex Machina. Em outubro, ele também abre a exposição A Biblioteca à Noite (leia abaixo), no Sesc Avenida Paulista.
Nascido em Quebec, Lepage é relativamente conhecido no Brasil. Em 2002, seu texto Os Sete Afluentes do Rio Ota estreou em São Paulo, com direção de Monique Gardenberg e cenografia do saudoso Helio Eichbauer. Um sucesso. Era uma maratona com cinco horas de duração, que retratava o drama humano da guerra e de assassinatos em massa, ocorridos no século passado, como a tragédia de Hiroshima e o Holocausto. Em 2014, o espetáculo Jogo de Cartas, apresentado no Sesc Santo Amaro, utilizava os quatro naipes das cartas para refazer uma trilha sobre conflitos mundiais e suas origens, como a questão inter-racial, social e de interesses econômicos. Já no cinema, Lepage foi Pôncio Pilatos em Jesus de Montreal, em 1989, no filme de Denys Arcand.
Todas essas obras expressaram uma preocupação do artista com a harmonia de suas criações, ao conceber um ambiente estável entre o debate de um tema que lhe é caro e a experiência estética. Em 887, não é diferente.
Na peça, ele experimenta, não pela primeira vez, o cruzamento de episódios de sua biografia com uma imersão multimídia. Aos 5 anos, o filho de um taxista e uma dona de casa perdeu todos os pelos do corpo, em decorrência de uma alopecia rara. O teatro surgiu a Lepage como possibilidade de um futuro mais entusiasmante que a adolescência deprimida. “A peça trata de minha relação pessoal com a memória”, conta. “Sou um artista de idade e meu trabalho é relembrar linhas e texturas do tempo. Em parte, são memórias da infância, de quando era jovem, mas, principalmente, o aspecto da memória que move uma sociedade.”
Alguns de seus dramas pessoais já foram entrelaçados lá atrás, no ano de 1985, em La Trilogie des Dragons, um espetáculo de seis horas de duração que despertava o imaginário dos canadenses sobre a China mítica. Além de teatro e cinema, Lepage mergulhou na ópera com gosto, encenando a tetralogia wagneriana de O Anel de Nibelungo.
Com tantas histórias e memórias no palco e nas telas, o artista permanece no front de uma arte que encontrou um dos grandes desafios de um mundo tecnológico. “Eu acho que as memórias pessoais são frequentemente falíveis. Recordar de algumas coisas que realmente aconteceram é um problema porque, às vezes, elas não aconteceram do jeito que nos lembramos.” Ele entende que as inúmeras fotos postadas em redes sociais como Instagram e na internet, podem até dar conta de registrar o passado, mas que seu arquivamento aponta para um futuro um tanto questionável. “Minha preocupação é: quem está contando nossa história agora mesmo? A imprensa? A internet? O Facebook? Isso são como memórias do futuro. E as fake news podem trair essas lembranças. Em 887, estou mais interessado nas memórias do passado.”
E foi nesse mesmo campo virtual, que Lepage travou grandes batalhas neste ano. Duas de suas produções, os espetáculos Kanata e SLAV tiveram temporadas canceladas após protestos. O primeiro trabalho contava a história colonial do Canadá e a histórica presença do povo indígena na região. A peça que estrearia em Paris, no Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine, foi criticada por não ter no elenco artistas indígenas ou descendentes. A repercussão provocou o recuo de parte dos patrocinadores, inviabilizando a estreia. Mesmo assim, o canadense enfrentou as críticas e não desistiu do projeto. Mais tarde, ele anunciou que faria um acordo com o Théâtre du Soleil e estrearia a peça sob o novo título: Kanata – Episode I – La Controverse. “Agora, estamos recriando algumas partes da história”, afirmou à reportagem. “E veremos o que vai acontecer. Queremos apresentar a nova versão em 2019.”
No caso de SLAV, a montagem que recuperava músicas compostas por negros escravizados foi cancelada repentinamente da programação do Festival Internacional de Jazz de Montreal, depois de inúmeras críticas de que o elenco era majoritariamente formado por artistas brancos. A acusação de apropriação cultural levou o artista com 40 anos de carreira a se pronunciar: “Para mim, o mais chocante é o discurso intolerante ouvido tanto na rua quanto em algumas mídias. Tudo o que levou a esse cancelamento é um golpe direto na liberdade artística.”
Os meses que passaram parecem ter dado a Lepage tempo de reflexão sobre as próprias declarações, até agora. Ele reconhece que os tempos mudaram, desde quando iniciou sua carreira, mas que seu ímpeto criativo dará mais espaço para ponderações. “Tudo o que aconteceu serviu como uma tentativa de entender o que é liberdade artística no teatro, que a princípio nos permite ser capaz de interpretar qualquer um e que o papel do ator é o de se colocar sob a pele de outra pessoa. As pessoas estão preocupadas como as minorias, com o politicamente correto, as regras parecem mudar e isso inspira um debate sobre os limites e não limites nas artes.” Sobre a condição de ter sido censurado, Lepage reconsidera: “É um assunto subjetivo a que não conseguirei responder nesses últimos 30 segundos que restam, mas é algo que continuarei debatendo por um longo tempo”.
Se o mundo todo está redesenhando seus limites, o artista canadense parece se tranquilizar no terreno que abriga suas raízes. “Picasso já disse que a arte é a grande mentira que nos faz perceber a verdade.”
887
Sesc Pinheiros. Rua Paes Leme, 195. Tel.: 3095-9400. 5ª, 6ª,
sáb., às 21h. R$ 40 / R$ 20.
Estreia 5ª (27). Até 29/7.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.