Rio, Eu Te Amo? São Paulo nunca foi mais bela, suntuosamente fotografada em preto e branco no filme Obra, de Gregorio Graziosi, exibido domingo à noite na mostra competitiva da Première Brasil. Na apresentação, o diretor lembrou que o filme estava tendo sua première no País e só fora apresentado antes no Canadá, em Toronto. Acrescentou – “Nosso fotógrafo é o André Brandão, e ele está sendo muito elogiado.” Deu para entender rapidinho o porquê.
Formado em cinema na Faap, o paulistano Graziosi fez curtas como Saltos, Mira e Monumento, todos exibidos no Festival de Locarno. Obra é seu primeiro longa, sobre arquiteto que realiza seu primeiro grande projeto, um prédio construído num terreno pertencente à sua família. Irandhyr Santos é quem faz o papel e o choque se estabelece com o mestre de obras Júlio Andrade, quando o segundo descobre uma ossada humana na área escavada. Segredos de família poderão vir à tona. Para manter as coisas no limbo, ocorrerá um (novo?) assassinato.
Não parece muita coisa como ficção dramática – algum espectador poderá dizer que é nada. Só que nada é tudo (e vice-versa). Pode até ser que surjam interpretações tão boas, mas melhores parece impossível. Irandhyr é nosso ator mais próximo do método. Todos os diretores falam da sua preparação no set, do seu mergulho nos personagens. Irandhyr faz o professor em Ausência, de Chico Teixeira. O personagem é gay e o garoto do filme deita-se em sua cama, pede um abraço. Irandhyr pediu socorro. “Que que eu faço?”, perguntou ao diretor. “Faça que eu filmo”, retrucou Teixeira. Irandhyr chorou. Foi maravilhoso, como sempre.
Ele concorre consigo mesmo aos Redentores de ator (por Obra) e coadjuvante (Ausência). No segundo, Júlio Andrade está em sua cola, metamorfoseado em mestre de obras. Com todo respeito pelos demais, são, talvez, os maiores atores de suas gerações – que ocorre ser a mesma. Um pernambucano e um gaúcho. Pode-se apenas imaginar a tensão de Irandhyr criando certas cenas. O arquiteto estressa-se, tem um problema de coluna. Acuado de dor, mexe-se feito bicho, batendo com a cabeça na parede. Faz uma ginástica para conseguir vestir-se. Se o belo Deserto Azul, de Éder Santos, não é um filme de ator, Obra, pelo contrário, é. Fotografia, música, direção de arte, tudo é impecável, e integrado num projeto de mise-en-scène, isso é, direção. Simultaneamente à escavação, à ossada – uma reminiscência rosselliniana, e Viagem à Itália, do grande Roberto, é um dos filmes que integram a mostra 6xRossellini, em versão restaurada -, há o projeto de reconstrução de uma igreja. Vão ressurgindo os painéis com os profetas, a anunciação da Virgem. As duas coisas se esclarecem e complementam, porque o arquiteto vai ser pai a qualquer momento. E a cidade participa com seus prédios, com sua arquitetura bruta (e o brutto aqui também é feio em italiano). A estranha beleza, a poesia que São Paulo tem. Muito interessante.
Outra experiência em preto e branco, o curta Outono, de Anna Azevedo, toca o sublime ao mostrar um casal, Angel Vianna e Pietro Mário. De uma vida inteira, sobrou apenas uma lembrança e o filme a reconstitui em dois tempos, diante da majestade do mar revolto. Existem imagens do rosto enrugado, esculpido na pedra, de Angel, que tocam o sublime. O cinema, quando tem aparecido nesse festival, faz a festa do cinéfilo. E há, claro, a homenagem ao México – o Foco México reúne produções recentes ao resgate de clássicos. O próprio Guillermo Arriaga, de volta ao Rio – esteve na cidade há duas semanas justamente para a lançamento de Rio Eu Te Amo -, recomendou ao repórter que não perca Güeros, de Alonzo Ruizpalacios, una obra maestra, uma obra-prima. Mas ontem foi o dia de parar tudo para (re)ver Vamonos con Pancho Villa/Vamos com Pancho Villa, de Fernando De Fuentes, de 1935. Obra-prima de verdade é aquilo. E em todas as sessões permanecem os protestos. Mais Cinema, Menos Cenário. A classe cinematográfica critica critérios de financiamento e pede transparência nas políticas (culturais) públicas da cidade chamada de maravilhosa.