Para prosseguir com qualquer conversa sobre Pedro Almodóvar – e Julieta – é bom ir logo esclarecendo um ponto importante. Almodóvar é um dos grandes do cinema, mas qual é seu maior filme? Alguém dirá Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, que culmina sua primeira fase, outros lembrarão Tudo Sobre Minha Mãe e claro que Volver terá boa cotação. Mas o melhor Almodóvar, e com isso não se negocia, é Carne Trêmula – outro de seus raros filmes adaptados. No caso, livremente adaptado de Ruth Rendell, como Julieta é livremente adaptado de Alice Munro. Às vezes, mesmo um autor tão fortemente pessoal como ele precisa se distanciar um pouco de si mesmo para atingir profundidades abissais.
Em Cannes, na coletiva de Julieta, Almodóvar contou que, por um triz, o filme que agora estreia não foi seu primeiro em língua inglesa. “Cheguei a pensar em fazê-lo no Canadá, e até pesquisei onde poderia filmar. Descartei porque é um país muito frio e eu não conseguiria viver cinco meses no inverno, e numa língua estrangeira. Pensei então em Nova York, que tem uma cultura latina muito forte, mas, de novo, esbarrei na língua. Não conseguiria ser autêntico filmando em inglês.” Julieta só começou a tomar forma quando Almodóvar se decidiu pela Espanha. Mesmo assim, o projeto tardou muito. Consumiu anos. “Se eu tivesse feito antes, a mãe seria diferente, mais próxima de meus filmes anteriores.”
Tinha de ser em espanhol – há uma sonoridade especial quando Julieta inicia a carta para a filha. O filme toma a forma de um longo flash-back. Julieta é essa mulher que guarda um segredo, e uma dor. A filha desertou dela, sumiu no mundo. Mas Julieta nunca desistiu de Antía. E, logo no começo, escreve a carta que nem sabe se chegará um dia à destinatária. “Voy a contarte todo.” Está feita a diferença. A garota partiu para reconstruir sua vida longe. Algo houve – você terá de ver o filme para saber o quê. Antía culpa a mãe, mas nem precisaria, porque Julieta é consumida pela dor da culpa. Num romance policial, seria a culpada, mesmo que, a rigor, não possa ser acusada de… Quê mesmo? Visto por esse ângulo, Julieta é um filme político, e de ressonâncias muito particulares no Brasil de hoje.
Se a dor é personagem, como diz o diretor no texto da capa, a cor saturada – o vermelho sangue, ou paixão – é o que liga Julieta à obra anterior. Cahiers du Cinéma, que colocou o filme nas nuvens – às vezes, a revista acerta -, chamou sua crítica de Dores e Cores. De novo, na coletiva em Cannes, Almodóvar esclareceu – “Minha descoberta do cinema está muito ligada ao Technicolor. Comecei amando aqueles filmes de cores muito saturadas. Posso ter evoluído para outros filmes, e autores, mas as cores ficaram. E, depois, eu precisava da cor. Julieta é muito sombrio, muito duro. Sem a intensidade, e luminosidade da cor para balançar, poderia ficar insuportável.” A dor, a cor – e o trem. Logo no começo da carta, quando Julieta passa a contar tudo, a ação passa-se num trem. É onde Julieta conhece Xoan, o futuro pai de sua filha, e tem o presságio de morte.
Pois a morte é importante em Julieta, como o mar. Xoan é pescador como Ulisses era marinheiro na Odisseia. O que Homero tem a ver com isso? Tudo. Julieta leciona história da literatura grega. O mar não é só paisagem. É um dos signos da tragédia de Julieta. O trem remete a Alfred Hitchcock, que é uma das influências no novo Almodóvar. Na coletiva, em Cannes, Almodóvar disse que ninguém sabia filmar num trem como Hitchcock, mas ele ousou. A morte, o sexo, tudo ocorre no trem. E, quando Julieta vai atrás de Xoan, entra em cena a governanta, numa referência direta a Rebecca, de 1940, único filme do mestre a ganhar o Oscar (mas ele não foi melhor diretor). Marian, a governanta, vai desencadear a tragédia com um comentário maldoso. E aí, é Almodóvar quem conta, Hitchcock cede espaço a Jean Genet – As Criadas.
O tempo todo Almodóvar sabia que queria trabalhar com duas atrizes para expressar a juventude e maturidade de Julieta – a deslumbrante Adriana Ugarte (linda!) e Emma Suarez foram as escolhidas. Num filme que trabalha muito com a elipse, não há elipse justamente na passagem temporal de uma a outra. Almodóvar explicou que, educado por salesianos, sempre gostou muito da história de Verônica, que secou o sangue e o suor do Cristo com um véu branco. Outro véu faz a passagem em Almodóvar. Já que falamos nas atrizes, vale citar o emprego (contra a corrente) da almodovariana Rossy De Palma, como a governanta. Para concluir, o plano mais misterioso do filme é o do cervo na neve, que Julieta vê do trem. “No livro é um lobo prateado, que não temos na Espanha. Resolvi adaptar porque, para mim, era fundamental. Não sei nem se o espectador retém a imagem, mas completa alguma coisa no meu inconsciente”, ele revelou, na coletiva. O que, cabe ao público decifrar.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.