O processo começou há dez anos, mas o novo filme de Flávia Castro, Deslembro, que estreou nesta quinta-feira, 20, guarda ecos que ganharam nova relevância nos últimos meses. O cenário principal é o Brasil do ano de 1979, pós Anistia. Mas o filme começa na França, onde Joana (a estreia de Jeanne Boudier), sua mãe (Sara Antunes) e irmãos vivem exilados, depois que o Estado brasileiro sumiu com o pai da família, militante contra a ditadura. A volta do grupo ao Brasil, então, coincide com um retorno de Joana ao lugar onde nasceu, mas que, na verdade, nunca conheceu – e a resistência enorme que ela exerce é fruto da imagem de um país que, nas suas palavras, “torturava e matava”.
O filme é uma ficção, mas tem fundo autobiográfico: Flávia experimentou o exílio com os pais durante infância e adolescência, e a angústia da volta também esteve presente na sua história. “O lugar do filho (de militantes exilados) é um lugar de experiência, e o que me interessa como cineasta é a subjetividade, não a ação, o sequestro, o assalto ao banco. No meu caso, quero tentar dar conta do que os personagens estavam sentindo”, explica. O ponto de vista da adolescente, então, se torna uma história “pequena” inserida no contexto mais abrangente, porque mostra o preço do autoritarismo na vida das pessoas e das famílias.
Na opinião da diretora, o cinema brasileiro já tem alguma tradição de pensar os processos históricos do País. “Filmamos no final de 2017, então o filme já absorve todo um clima”, comenta a diretora sobre o espírito da época em que o filme chega – alguém grita um “vai pra Cuba!”. “Mas os filmes se inscrevem no presente da sua realização. Ele é o que é hoje, nesse dia de estreia. Ele nasce dessa relação com o que está fora. Se ele se inscrever num trabalho de memória, que nós não fizemos no Brasil e é urgente num momento de negacionismo histórico avassalador, já seria uma coisa imensa”, projeta.
Na sua volta ao Brasil, a personagem Joana encontra sua avó paterna (Eliane Giardini), e com sua ajuda tenta desvendar o pouco que se lembra do pai.
Outra camada do filme é a troca de idiomas, que ocorre muitas vezes no mesmo diálogo – além do português e do francês, o castelhano aparece na figura de Luis (Julián Marras), companheiro da mãe. Essa troca de linguagens, como definido pela crítica argentina Sylvia Molloy, “abala a fundação da casa”.
A questão é outra tinta autobiográfica do filme, para Flávia. “É real, abala mesmo. O idioma é uma maneira de pensar o mundo. A Joana passa de uma língua para outra e, quando ela faz isso, nas discussões com a mãe, são questões muito sintomáticas de como ela vivencia toda essa experiência.” Mas como reproduzir, na tela, essas ideias? “Eu precisava de crianças que vivessem isso, porque não se pode inventar”, brincou. Ela então encontrou Jeanne Boudier.
Hoje, Boudier tem 17 anos – nasceu na França, e desembarcou no Brasil aos 2 anos de idade, por conta de movimentações no trabalho do pai. A diretora precisava de atores bilíngues e, numa aula de teatro do Lycée Molière, encontrou Jeanne e lhe pediu um vídeo. Sua experiência anterior correspondia às classes de teatro na escola e passagens rápidas pela Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), mas era, nas suas palavras, um trabalho “muito leve”. Seu sonho, porém, era ser atriz. Foi selecionada.
A personagem, Joana, é uma adolescente naquela fase em que tudo na vida parece definitivo: o rock n roll do The Doors, o violão marcado de Caetano Veloso em Cajuína, a literatura francesa e a poesia de Fernando Pessoa (é de um poema dele de onde vem o título do filme). Num passo seguinte, as descobertas do “mundo real”: o Arpoador, o fumo, o sexo. A intensidade (que nunca se confunde com rigidez, pelo contrário) com que a estreante interpreta todas essas fases é coisa não menos do que surpreendente.
“Sempre estive entre os dois países, França e Brasil, e nunca soube dizer se sou mais francesa ou brasileira”, comenta Jeanne sobre sua sobreposição com a personagem. Sara Antunes, que faz a mãe, também vivenciou experiências semelhantes às do filme – filha de exilados, morou na França e também empreendeu uma investigação particular sobre a história da própria família na ditadura. “A Flávia queria criar um outro imaginário do que a gente tem de guerrilha e de ditadura militar. A mãe militante é a mesma que corta cebola. Essa perspectiva contribui muito para a gente entender esse período.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.