Variedades

Em grande forma vocal, Nana Caymmi retorna à cena com disco para Tito Madi

Uma dor no peito de Nana Caymmi parece impedir sua entrega à felicidade plena mesmo diante de um grande feito. Depois de dez anos sem um álbum solo, três sem subir a um palco, 53 depois de vencer o Festival Internacional da Canção com Saveiros, ela acaba de entregar um de seus feitos mais bem acabados. Onze canções clássicas de Tito Madi, uma das vozes que a despertaram para a canção brasileira logo cedo, atestam uma produção de estúdio rigorosa pensada por pessoas que a conhecem muito bem, como os arranjadores Cristóvão Bastos e Dori Caymmi e o produtor José Milton. Sua voz está brilhante, emocionada, precisa. Nana volta aos palcos em breve, mas fala com um certo pesar. “Ele não está mais aqui, e isso me incomoda demais.”

Há um lamento nesse tom. O ele é Tito Madi, o próprio, que estava feliz em saber das gravações, mas que não ficou para vê-las finalizadas. “Demoramos demais”, diz Nana. “Fiquei muito abatida.” O projeto começou em 2013, depois que Emílio Santiago falou da ideia do tributo a um dos personagens mais robustos do samba-canção. Emílio morreu naquele ano e Nana se abraçou a outros trabalhos, como o projeto em homenagem ao pai, Dorival Caymmi. O álbum foi sendo protelado e Tito também partiu, aos 89 anos, em 2018.
Ao mesmo tempo, um segundo projeto já começa a ser desenhado. Nana foi convidada recentemente para gravar um disco pelo Selo Sesc cantando Tom Jobim, com arranjos do irmão Dori. “Mas vou pegar um Jobim casca grossa, não vai ser Garota de Ipanema, não.”

Canto e levitação

Nana, com a transparência que não lhe permite interpretar personagens que não sejam ela mesma, se reanima quando imagina Tito ouvindo seu presente, onde quer que esteja. Um ato espiritual? “Ah, música sempre foi meu voo de astronauta. É quando eu viajo pelo mundo e sinto que até os espíritos me envolvem. Eu me transporto no palco.” Uma comparação pode ser útil para um parâmetro da atual voz de Nana, 77 anos. Não Diga Não, agora com arranjo e violão de Dori e piano de Itamar Assiere, é a Nana dos melhores dias. Ela obedece à dinâmica dos pianíssimos da primeira gravação, usando, sim, um tom mais baixo mas chegando onde quer e com a voz sobrando. Sua emoção, produto da mesma tristeza que não esconde na entrevista ao falar do amigo que se foi, é a que está lá, intacta e verdadeira.

O álbum caminha por um registro nostálgico, noturno, invernal, sem pressa e sem gingas. “Você bebeu?”, diz Nana, quando ouve que o repórter escutou o álbum algumas vezes. Como assim, Nana? “Bebeu um uisquinho para ouvir?” É esse o espírito. Mesmo Balanço Zona Sul, a que mais poderia levar o clima para algo suingado, como fez Wilson Simonal, em 1963, ou o próprio Cesar e seu Som Três, Nana faz a primeira parte aliviando a marcação da bateria de Jurim Moreira, reforçando o piano de Cristóvão Bastos e deixando o esquenta para a entrada da voz de Dori. O disco traz ainda Chove Lá Fora, com o violoncelo escrito por Dori na abertura; Carinho e Amor; Quero-te Assim; Sonho e Saudade; Canção dos Olhos Tristes; Graças a Deus Você Voltou e Gauchinha Bem Querer. “Eu quis fazer tudo imaginando ele, o Tito Madi, sentado na praia vendo as meninas passar naqueles anos 60, 70 do Rio de Janeiro.”

Havia uma expectativa por Nana depois desses anos sem palco. Afinal, como estaria a saúde, a voz, as emoções. Em pouco tempo de entrevista, sabe-se que Nana segue sendo Nana, nas carícias e nos arranques. “Sempre gostei de uma birita, mas tomei sempre socialmente, nunca cheguei bêbada, ninguém nunca me carregou. Enquanto as pessoas tomam cerveja, aquela merda quente, eu gosto de um uísque.” Sua voz tão certinha nas gravações poderia ser fruto de ajustes de máquinas de estúdio que colocam cantoras no prumo? “Eu sou no peito e na raça. Usar uma máquina dessas seria como mandar outra mulher no meu lugar na lua de mel. Faço tudo e na melhor hora não sou eu quem está lá?” Sobre sua relação com o irmão Dori, gênio forte como o da irmã, ela diz: “Ele manda e eu mando, a gente briga o tempo todo. Mas nosso entendimento na vida é também impressionante. Ele me liga para falarmos de futebol. Fiquei p… por saber que o goleiro da Juventus (Buffon) foi vendido para o PSG. Fico vendo a liga do basquete, do vôlei”. E fala de Elis Regina: “Elis tinha uma infelicidade na cara, vivia uma ansiedade que eu jamais tive. Cada cantora que aparecia era uma agulhada em suas costas”.

Nana diz que ouve música desesperadamente. Adora Barbra Streisand (“ela pega uns p… arranjadores”), lembra de ter trazido Beatles para os Caymmi (“mamãe se apaixonou pela música Michelle”) e fala de uma grande preocupação. “Meus discos de ópera. Eu nunca tive um parceiro que me acompanhasse nisso, ouvir ópera. Acabou sendo uma frustração para mim.” Nana buscou a voz que tem. Ou melhor, a escolheu. “Eu escolhi algo assim como o canto dramático, o canto sentido. E o samba não deixa de ser isso. Tire o ritmo para ver a letra que fica ali, as letras de Cartola, Monsueto, Nelson Cavaquinho.”

Hierarquia doméstica. O que poderia ser seu passaporte, o sobrenome Caymmi, se tornou um peso no início da carreira. O pai Dorival não aceitava o fato de ter uma filha cantora, e só se acostumou com a ideia ao perceber que aquilo não era nem mais uma escolha de Nana. “Minha bagagem era a mais difícil, se comparada com outras cantoras. Imagine que eu tinha de respeitar uma hierarquia dentro de casa, que era meu pai, Dori, Danilo e minha mãe, com um senso musical muito apurado. Quando descobri minha voz, aí foi mel na chupeta. As pessoas vão para meu show hoje já sabendo que eu irei lavar suas almas.”

Nana passa seus dias entre Pequeri, na Zona da Mata mineira, e Rio de Janeiro, sendo mãe de João Gilberto, que recebe seus cuidados por ter sequelas neurológicas de um acidente de moto e cantando com os pássaros que aparecem em seu quintal. “Sim, e eles param para me ouvir.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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