Nos tempos de colégio, o premiado ilustrador e autor de livros infantis Anthony Browne, hoje com 69 anos, era um tipo bem popular. Tudo porque o escritor inglês, bom desenhista, sempre atendia aos pedidos dos coleguinhas para criar no papel garotas de seios fartos. Certa vez, quase se meteu numa confusão por retratar uma professora do jeito que ela veio ao mundo. A sedutora Miss Jones sacou o desenho de sua mão, fez uma pausa grave, deu um sorriso e seguiu em frente, sem dizer nada. Não chegou a provocar um trauma, mas, na dúvida, Browne passou a desenhar bichos no lugar de garotas nuas. E virou o maior desenhista de gorilas que o mundo conheceu, depois de ver no cinema a primeira versão de King Kong (1933), aquela em que o gorila gigante, de oito metros de altura, se apaixona por uma beldade loira.
A exemplo da frágil Ann, interpretada no filme por Fay Wray, Browne sempre foi fascinado por gorilas, vendo neles um substituto para a figura do pai – pelo contraste entre sua aparência truculenta e gestos enternecedores. “Tem, de fato, algo a ver com meu pai, muito alto, como os gorilas, que, vigorosos, podem ser agressivos numa hora e muito gentis em outros momentos.” Browne, que tem dois livros clássicos seus lançados agora pelo selo Pequena Zahar, Gorila e O Túnel, pegou um deles num dia errado.
De Londres, por telefone, ele contou ao Caderno 2 que foi mordido por um gorila durante as gravações de um especial para a televisão britânica. Ele entrou na jaula justamente quando o tratador atirava pétalas de rosas aos bichos, que são guloseimas irresistíveis para os grandalhões. Um deles, ao ver Browne, logo fincou os dentes em sua panturrilha. O escritor foi parar no hospital. Ele lembra bem da dor, mas nem por isso parou de desenhar gorilas. “Não foi culpa dele.”
Em todo caso, foi depois desse episódio que Browne criou o antípoda de seu gorila, um esperto chimpanzé chamado Willy the Chimp. Afinal, quem não é o maior, tem de ser o melhor, pensou, criando um macaquinho simpático e solitário num mundo de gorilas -isso até conhecer Hugh, representante dessa espécie que se torna seu amigo. Embora o chimpanzé seja uma das mais amadas criações do ilustrador, uma prova vigorosa do surrealismo que caracteriza sua produção, as crianças, pelo jeito, ainda amam mais o seu macacão.
Gorila, o livro, está completando 32 anos e já acumulou dezenas de prêmios importantes, entre eles o Hans Christian Andersen. Nesse livro clássico, Browne elege como alter ego uma garota, Hannah, que ama gorilas, mas nunca viu um ao vivo. O pai, figura ausente, está sempre ocupado demais para levar a garota ao zoológico. No dia de seu aniversário, ela suplica um gorila ao pai, mas ganha de presente um simulacro de pelúcia (a história aconteceu com o autor, que ganhou um trompete de plástico quando desejava um igual ao de Dizzy Gillespie). Desapontada, Hannah joga o gorila de brinquedo de lado e vai dormir. Durante a noite, o gorila ganha vida, veste o casaco e o chapéu do pai de Hannah e a leva até o zoológico e ao cinema, além de dançar com a menina no gramado.
Browne conta que, a exemplo de Hannah, foi marcado pela ausência do pai, que perdeu quanto completou 17 anos. Ele levou anos para perceber como a morte do patriarca da família Browne, marcado por um trauma de guerra, afetou profundamente sua criação literária. O ilustrador descobriu, entre outras coisas, que o pai, gentil e carinhoso, havia trucidado dois soldados alemães durante a guerra- e seus primeiros desenhos foram cenas de batalha, inspiradas nos quadrinhos que lia quando criança – “Eu não era um devorador os clássicos na infância”, reconhece.
O pai é uma figura ausente em O Túnel. A mãe, no livro, é igualmente uma figura distante e impaciente, que, numa tentativa derradeira de aproximar seus dois filhos briguentos, um menino e sua irmã menor, empurra os dois para a rua. O garoto logo vê um túnel e se arrisca a descobrir o que existe do outro lado. A menina, mesmo amedrontada, segue o irmão, penetrando num túnel escuro, úmido, que a conduz a um bosque surrealista, em que as árvores sugerem formas de dedos e bichos da floresta. Numa clareira, para seu espanto, ela encontra um vulto imóvel como uma pedra, seu irmão. Só quando o abraça, a estátua volta à vida, retornando ao lar com a irmã.
O livro é um sucesso nas escolas inglesas, onde os professores não cansam de promover laboratórios teatrais com as crianças. O Túnel foi também objeto de inúmeros ensaios, alguns bastante alucinados. Num deles, que faz uso de teorias freudianas, a menina, segundo a tresloucada análise, sofre de desejo incestuoso pelo irmão (como não há a figura do pai, o poder patriarcal é representado por ele). A floresta escura é vista como uma representação alegórica do inconsciente. Suas árvores (com dedos fálicos) seriam sugestivas da transição do autoerotismo à interação com o outro, sendo o túnel uma vagina pela qual a “reprimida” Rose superaria sua “castração”.
“Nem perco tempo lendo essas baboseiras, porque, evidentemente, não penso nisso quando estou criando histórias para crianças”, diz Browne, que ilustrou O Túnel apenas para retratar a reconciliação entre dois irmãos. Quanto ao aspecto surrealista da floresta, ele aposta que as crianças, menos condicionadas e mais “surrealistas” que os adultos, “estão aptas a perceber o que está diante de nossos olhos e ignoramos”.
Browne, que começou sua carreira aos 28 anos, ilustrando livros científicos para ensinar estudantes de medicina a operar, lembra que foi justamente neles que descobriu seu potencial de contar histórias por meio do desenho. “Se tenho uma missão, é essa de ensinar a ver numa época em que as pessoas perderam a capacidade de enxergar, em nossa era marcada por uma profusão de imagens desqualificadas pela banalização.”
O surrealismo de Browne, que já lhe valeu comparações com Lewis Carroll e Maurice Sendak, seria uma resposta à uniformização digital, e já custou ao autor pelo menos um processo, movido pelos herdeiros do pintor René Magritte, por causa de uma tela do belga que ele reproduziu em Através do Espelho (1976), em que um homem se olha num espelho e vê suas costas. “É engraçado, pois minha intenção era justamente tornar Magritte acessível ao grande público, especialmente às crianças, para mostrar que existe uma diferença entre ilustrar e pintar.” Tanto que ele não se opõe, mas tem pudor em expor os belos desenhos dos seus livros infantis em museus e galerias. “Eles ficam melhor nas páginas dos livros”, comenta Browne, que prepara o lançamento de uma nova aventura de Willy, o Chimpanzé. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.