Cada nova gravação do pianista brasileiro Antonio Vaz Lemes é uma aventura por novas maneiras de chegar mais perto não só do público da música de concerto, mas de todos os públicos. Foi assim com o CD Cromo (2018), em que convidou a cantora popular Eliane Barni a percorrer um território de canções cultas, incluindo, por exemplo, o Soneto da Separação, de Vinicius de Moraes, musicado por Ronaldo Miranda. Seu canal no YouTube, o PianoQueToca, o transformou em digital influencer poderoso, com mais de 500 mil seguidores.
O seu novo álbum, Antonio Vaz Lemes – Villa-Lobos, se assemelha a um relato biográfico-musical de sua convivência com Villa. Pit stop previsível. Afinal, ele toca as Bachianas Brasileiras n.º 4, que estudou quando aluno no Conservatório de Tatuí, e aprendeu a amar Saudades das Selvas Brasileiras, duas curtas peças, por obra e graça de Gilberto Tinetti, que há pouco nos deixou e fez da primeira delas o prefixo de seu programa Pianissimo na Cultura FM. "Ele me apresentou esse delicioso díptico sobre o imaginário da natureza brasileira. Cantos de pássaros imaginários, de ventos, trens e tribos", conta Vaz Lemes em entrevista ao Estadão. Por causa dos pouco menos de 5 minutos finais do álbum, preenchidos pelo Samba Clássico, Vaz Lemes conta essa história: "Conheci essa canção recentemente, quando fazia a direção musical de documentário sobre a excursão artística que Villa fez em 1931 por estradas de ferro de São Paulo. Me impressionou a introdução do piano, mas achei ufanista e até meio babaca a letra (do próprio Villa assinado com pseudônimo). E pensava: De onde ele tirou esse Brasil tão perfeitinho?".
<b>Ironia</b>
Após amadurecer a convivência com esse "samba", Vaz Lemes concluiu: "E justamente por conta da introdução do piano: e se ele mesmo já estivesse inconformado? Nesse meio-tempo, conheci a cantora trans Verónica Valenttino interpretando Belchior e aí veio a ideia de chamar alguém como ela, que tem lugar de fala sobre as dificuldades de se viver no Brasil como artista e mulher trans, para apresentar a canção. Pedi para ela cantar com ironia. Senti que assim tornamos o Samba Clássico atual".
Ouvir essa interpretação é assistir ao traslado de uma composição em estado, digamos, erudito, para o universo popular, no qual a voz transmite o lugar de fala em que se trava a batalha pela afirmação da diversidade de gênero no País. O que seria mero ufanismo vira mote de resistência.
Os versos do Villa dizem que é possível sonhar com uma terra "Que não elege raça/Nem prefere crença" e, quando foram escritos, nos anos 1930, soavam mesmo ocos. Agora, com Verônica Valenttino e Antonio Vaz Lemes, soam como reais símbolos de luta.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>