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Em novo romance, Michel Laub explora tolerância e liberdade sem esquecer trama

O tribunal está armado e todos passamos por ele: seja como réus, juízes ou promotores, mas na maior parte das vezes como todos eles. O novo romance de Michel Laub – e principalmente o novo narrador de Michel Laub – reflete sobre questões diferentes, que vão do linchamento virtual às ruas ricas da zona sul de São Paulo, da conquista à traição, da reportagem de Helio Costa no Fantástico em 1983 sobre a aids até a troca de áudios via Whatsapp. Liberdade e tolerância são os dois pilares do romance O Tribunal da Quinta-Feira, o sétimo do premiado escritor gaúcho, e o mais recente de uma trilogia que explora a sobrevivência de indivíduos a traumas coletivos. Laub conversou com a reportagem.

A aids é um tema que ficou suspenso nos últimos anos, mas você decide retomar aqui.
O que me fez escolher é que tecnicamente não é mais uma doença fatal. Isso era uma contribuição que eu poderia dar a esse tema, diferente dos livros dos anos 1980 e 1990. Ainda havia uma simbologia de morte muito forte. Agora existe um distanciamento. Se pode explorar as ambiguidades dos temas de maneira mais livre, não há uma carga imediata de consequências na vida real. Na literatura, isso é sempre mais interessante do que falar do noticiário. Eu achei que falar de intolerância, sexualidade, preconceito, por meio do tema da aids, seria uma coisa mais original do que falar diretamente do preconceito simples, do boçal que chama o outro de “viado”, etc. Não é que esse confronto não seja importante, mas ele está sendo feito por outros discursos que não são o da literatura. A literatura tem que procurar temas e maneiras de trabalhar assuntos que a façam ser um discurso diferenciado no meio dos outros.

O romance explora a correspondência no ambiente privado e como ela se transforma ao ser divulgada. Como esse sentido se altera e por que isso é importante?

Todas essas coisas têm a ver umas com as outras. O que é a linguagem da literatura frente à linguagem da militância, da publicidade, da política? Tem uma particularidade. É um espaço para trabalhar com a empatia, um dos poucos. Na rede social não existe empatia. Na política, tampouco. Por exemplo, no livro eles usam muito a ironia, que está morrendo. O Salman Rushdie, se referindo ao episódio da fatwa, define toda aquela celeuma como o grande combate entre a mente literal e a mente irônica. A literatura é o espaço onde você pode relativizar algumas coisas.
No fundo, é um narrador em primeira pessoa e ele não é simpático. Então o leitor se coloca no lugar do “inimigo”. Tive um pouco essa intenção. No caso do livro, ele pode ter sido massacrado por um seguidor do Bolsonaro, como acontece. Mas acho legal mostrar também como esse cara pode não ser compreendido pelo outro lado. Se há um sentido edificante na coisa – não sei se há – é isso de fazer a gente olhar e ver que nós mesmos somos capazes de cometer atos peremptórios, fascistoides, como julgamos que só os outros são capazes.

Você também comentou sobre essa questão do narrador não simpático ao ler recentemente Elena Ferrante, A Filha Perdida.

Esse narrador antipático não é um psicopata. No caso da Elena Ferrante, ela fala de um negócio que é meio tabu: a mãe que não gosta de ser mãe, tem competição com as filhas. Esse é um bom teste para a literatura: o discurso de um livro caberia num comercial de TV? Caberia num post de rede social? Se ele não cabe, é porque a literatura tem alguma relevância. Ninguém faria um post falando disso. É um bom teste: estar indo contra alguma certeza do seu tempo ou não. Escritor não pode não ter coragem de ir contra certezas de seu tempo. Se não fica em casa, faz outra coisa que dê dinheiro.

O livro é uma defesa do personagem, um homem branco, bem de vida, definido por ele mesmo como um “arrombado”, “chefe que usa seu cargo para seduzir”, “homem que perpetua a injustiça de gênero”. Por quê?

Ele se coloca como réu, e depois também como juiz, porque julgou o amigo, julgou a mulher. É uma coisa que acontece, julgamos os outros o tempo todo. Não existe neutralidade. Digamos que o livro poderia até ter aberto para outros pontos de vista, mas eu quis fazer algo fechado mesmo. Era uma defesa. Quando ele descreve a mulher, descreve ironizando. Existe uma camada de leitura que talvez as pessoas não estejam dispostas a dar, mas não posso pensar nisso.

O narrador diz que esse homem sofreu uma queda. Mas os resultados políticos dos últimos meses, por exemplo, não reforçam justamente a ideia contrária?

Eu não uniformizaria o macho, branco, heterossexual, etc., como uma coisa só. Como se a queda dele fosse uma coisa simbólica do mundo. Não é. Foi com esse cara, nessas circunstâncias, ele se ferrou. Ele também não é muito típico. Ele se autoironiza. No fundo, ele não entra muito no esquema na publicidade; o melhor amigo é gay; ele casou com uma mulher mais ou menos típica, dos humanistas da Vila Madalena, não sei o que, e aí do nada ele caiu fora, se ferrou, e reflete sobre isso mesmo, sobre ter virado símbolo de alguma coisa quando na verdade ele é mais ambíguo. O mundo é diferente daquele que existia há 20 anos. Em vários sentidos, muito melhor, porque as lutas sociais de fato avançam, geram direitos, mas muita gente fica no caminho do processo. Literatura tem que se preocupar com essas nuances. Acho mais interessante falar disso do que dos grandes movimentos.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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