Os casos variam: tapas e socos no rosto, pisão nas costas, chutes pelo corpo. Em outros relatos, agressões de agentes de segurança vêm em golpes de cassetete, enforcamento e até choques elétricos. Em dois anos e meio, as audiências de custódia feitas na cidade de São Paulo somam 3.638 presos que declararam ter sofrido maus-tratos ou tortura no ato da prisão, segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).
Os registros foram feitos entre fevereiro de 2015 e o dia 8 de agosto pelo Departamento de Inquérito Policiais (Dipo 5), que responde pela capital paulista. Por 2.770 vezes, ou 76,1% dos relatos, o preso acusou, na audiência, que foi agredido por um PM no momento da prisão. Em outras 779 (21,4%), o algoz seria um policial civil. Já a Guarda Civil Metropolitana (GCM) foi citada em 66 declarações (1,8%). Os demais 23 casos (0,7%) envolveriam outros agentes de segurança, que atuam em espaços privados ou públicos.
Pelas regras da audiência de custódia, a pessoa detida em flagrante tem de ser apresentada ao juiz em até 24 horas. Com objetivo de combater o encarceramento em massa, o programa também serve de mecanismo de controle da violência policial, pois dificulta que marcas de agressão sejam escondidas e permite que o preso denuncie.
Só no primeiro semestre deste ano, o Dipo 5 recebeu 843 relatos de maus-tratos ou tortura, o que representa 7,2% das audiências realizadas no Fórum da Barra Funda no período. Ou seja, a cada 14 detidos, um disse ao juiz ter sofrido violência. Em todo 2015, foram 1.187 denúncias, ou 8,4%. Em 2016, 1.409 (6,3%).
Nem todos os relatos viram investigação profunda. Após a denúncia, o TJ-SP verifica a acusação do preso, confrontando-a com informações como o exame do Instituto Médico-Legal (IML). Se confirmado o indício, a Justiça pede que a corregedoria instaure inquérito.
O método serviria para evitar abrir investigações em casos de uso legítimo da força ou até de automutilação. “Não é qualquer alegação que pode gerar um procedimento. Isso custa para o Estado e pode tomar o tempo de outras apurações mais consistentes da própria tortura policial”, afirma o juiz Valdir Ricardo Pompêo Marinho, assessor da Presidência do TJ-SP. “É preciso ter um crivo.”
Críticas
O procedimento, porém, é alvo de críticas. “O relato chega no Dipo e demora três meses até que o juiz e o promotor se sentem e analisem. Isso esvazia a possibilidade de investigação”, diz o advogado Henrique Apolinário, da ONG Conectas, que desenvolveu o estudo Tortura Blindada. “Nesses moldes, não há chance de punição.”
Ao todo, Apolinário analisou 393 casos. “Pediram arma de fogo pra me liberar, falei que não tinha (…) Levei um choque na costela, dois nas partes intimas e um no pescoço”, diz um dos relatos. “Todo tipo de agressão, deram murro, cacetada, enforcaram”, diz outro depoimento.
Os presos passam por exame de corpo de delito no fórum, mas o detalhamento das lesões no laudo depende até da conduta pessoal do perito, segundo o estudo. Em 16%, o laudo é mais sucinto do que o relato na custódia. Já em 11% o médico traz elementos novos. Entre os exemplos, um preso tentou escapar do flagrante e chegou à audiência com o pé enfaixado. “Eles me deitaram no chão e passaram a viatura no meu pé”, afirma. No laudo do IML, segundo o estudo, o episódio virou “acidente automobilístico”. “Me jogaram no chão”, diz outro relato. Para o IML, tratou-se de “queda da própria altura”.
O juiz e o Ministério Público podem pedir abertura imediata de inquérito – isso só ocorreu em um dos 393 casos. Em 26%, o relato nem sequer foi para o Dipo 5. Em 72% das vezes que o preso relatou agressão, o flagrante foi convertido em prisão provisória. “Há uma crença de que a denúncia é feita para que ele consiga liberdade, mas os dados desconstroem essa lenda.”
Investigações
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirma investigar “todas as denúncias de irregularidades ou abusos policiais”. “Se confirmadas, os agentes são punidos rigorosamente”, diz a pasta, que não informou quantos agentes sofreram punição.
Segundo a SSP, a Corregedoria da PM já recebeu 1.757 queixas da Justiça contra a conduta de PMs no ato da prisão, em todo o Estado. “Sendo que 1.087 dessas apurações, 61,8% das queixas, foram encerradas e concluídas como improcedentes”, afirma a nota. Não foram informados números da Polícia Civil.
A Secretaria Municipal de Segurança Urbana, responsável pela GCM, diz que apura os casos. “Não se permite que permaneçam na Guarda Civil Metropolitana aqueles que cometam ações graves”, diz a nota. Já o MP-SP afirma que, entre abertura de inquéritos na promotoria e pedidos de investigação, foram instaurados 1.425 procedimentos apenas em 2017. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.