“Torcendo pelo melhor, mas esperando o pior. Vocês vão jogar a bomba ou não?” O temor na letra da banda Alphaville em seu sucesso Forever Young, de 1984, é uma lembrança do fantasma de uma aniquilação nuclear que perseguiu o mundo nos anos da Guerra Fria (1947-1991).
Mais de três décadas depois, a ideia de que uma agressão implicaria destruição mútua fez o mundo se acostumar com a existência das armas nucleares. Mas as últimas agressões verbais e ameaças entre Rússia e EUA – as duas maiores potências nucleares – começaram a perturbar a sensação de paz.
A relação entre os dois países vem se deteriorando muito nos últimos anos e nada aponta hoje para um diálogo, afirma o diplomata brasileiro Sérgio de Queiroz Duarte, que foi alto-representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento.
Há um ano, o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou que seu país estava desenvolvendo novas armas capazes de atingir qualquer ponto do globo e escapar de um escudo antimíssil montado pelos EUA. O discurso foi considerado por analistas o mais belicoso em anos e marcou o início de uma escalada na corrida armamentista.
As análises se mostraram corretas. Em dezembro, Putin confirmou um bem-sucedido teste de um novo míssil hipersônico Avangard, que, segundo o Kremlin, é capaz de contornar qualquer sistema de defesa antimíssil. Em janeiro, o presidente Donald Trump retirou os EUA do Tratado de Proibição de Mísseis Intermediários (INF, na sigla em inglês), assinado com a então União Soviética em 1987 e um pilar na prevenção de uma guerra nuclear na Europa. Moscou suspendeu sua adesão ao pacto oficialmente no sábado.
Considerando que 25% do arsenal nuclear de cada uma das duas nações está pronto para ser usados (EUA, 2.750 ogivas; Rússia, 1.790), russos e americanos têm sido prudentes para evitar uma hecatombe. Os poucos contatos se dão pelo chamado “track 2”, expressão na diplomacia para se referir a um caminho informal de conversação. “O que não é um indício de que essas iniciativas estejam prestes a dar algum fruto importante e transformar-se em algo formal”, pondera o diplomata brasileiro, presidente da organização internacional de luta contra as armas nucleares Pugwash, ganhadora do Nobel da Paz de 1995.
Além da troca de acusações, Rússia e EUA vêm ao longo dos anos travando guerras por procuração em conflitos nas mais variadas partes do mundo como Síria, Irã, Coreia do Norte e, mais recentemente, Venezuela. “Em qualquer lugar do mundo, a rivalidade entre as duas grandes potências pode significar um conflito. Não é uma situação muito confortável”, afirma.
Com tudo isso, o cenário não é promissor. Para o diplomata, que também foi representante junto à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), em Viena (1999-2002), a situação internacional hoje é mais perigosa do que ao longo da Guerra Fria, com exceção dos momentos de crise, como a dos Mísseis, em Cuba (1962). “Todos esses são pontos de preocupação. Se de repente acontecer alguma coisa, pode ter uma crise. Com nove países hoje possuindo armas nucleares, você tem uma situação mais imprevisível do que na era da Guerra Fria.”
O diplomata participará em maio, em Nova York, da próxima reunião de preparação para o encontro entre os signatários do Tratado de Não Proliferação (TNP). A reunião ocorre a cada cinco anos para se verificar a implementação do tratado. Apesar de não estar na agenda, a rivalidade exacerbada entre russos e americanos é uma preocupação nos bastidores.
O TNP é, na verdade, um dos pontos de convergência entre os dois, que têm grande interesse em mantê-lo. O diplomata explica que isso ocorre porque o tratado reconhece Rússia e EUA como detentores de armas nucleares e proíbe os demais de as possuírem. “Os países não possuidores que são membros do TNP (como o Brasil) cobram dos dois passos concretos para o desarmamento”, diz Duarte.
Pouco discutido nos dias de hoje, o temor de uma guerra nuclear é um marco dos anos 80, inspirando filmes e músicas. Na Europa, mísseis americanos de alcance médio, de até 5 mil km, apontavam para a então União Soviética, que por sua vez apontava os seus para os europeus. O INF determinou a retirada desses mísseis e grande parte foi desmantelada. Com o tempo, segundo o diplomata, a opinião pública se acostumou com a existência das armas nucleares.
“A mídia passou a dar muito menos ênfase aos perigos da guerra nuclear do que aos supostos benefícios de segurança que a posse das armas dá a seus possuidores.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.