Fogão por R$ 600, sapatilha de R$ 49,90, exame de sangue a R$ 6,50, detergente abaixo de R$ 2. Da indústria a prestadores de serviços, empresas começaram a desenhar produtos adequados para o bolso dos brasileiros das classes C, D e E na expectativa do retorno do consumo popular.
As companhias admitem que há obstáculos a serem superados para o consumo popular deslanchar, como inflação e juros altos. No entanto, enxergam vários motores a favor desse movimento. O reajuste real do salário mínimo e a manutenção de R$ 600 para o Bolsa Família devem injetar mais recursos na economia. O governo também já indicou que deve lançar o “Desenrola”, um programa para a renegociação da dívida das famílias, e pode acabar com o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para eletrodomésticos. Esses produtos também estão próximos de esgotar um ciclo de vida útil, iniciado há 10 anos.
Líder na fabricação de fogões populares, a Esmaltec já lançou modelos de eletrodomésticos mais acessíveis ao consumidor, trocando fornecedores de aço e substituindo matérias-primas e peças. Com isso, a companhia conseguiu manter os preços dos fogões e das geladeiras de entrada – as mais baratas – na faixa de R$ 600 e R$ 1,1 mil, respectivamente. Parte dos novos produtos já está no mercado desde dezembro, conta o CEO da empresa, Marcelo Pinto.
A fabricante, do Grupo Edson Queiroz, avalia também a possibilidade de produzir tanquinhos. Esse eletrodoméstico foi, no passado, um dos ícones da ascensão da classe C. “Se o governo acabar com o IPI para a linha branca, vai ser um impulso muito grande (à produção), principalmente para os produtos de entrada”, afirma o executivo. Recentemente o ministro Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, afirmou a empresários que pretende acabar com esse tributo por meio da reforma tributária.
O executivo lembra que o ciclo de vida útil de um eletrodoméstico é de cerca de dez anos e a renovação ocorreu pela última vez em 2012. Como 2022 foi um ano muito ruim para o mercado de fogões e geladeiras, essa substituição acabou sendo adiada. Ela poderá ocorrer neste ano ou mais para frente, se houver algum estímulo, prevê o CEO. “Mas estamos com o pé no chão, porque muita coisa a gente não controla”, pondera.
Há 50 anos fabricando itens de limpeza doméstica para as classes de menor renda, a GTEX, também traçou a sua rota para o novo ciclo de consumo popular. Dona das marcas Urca, Baby Soft, UFE, entre outras, a empresa comprou no ano passado quatro fábricas em diferentes regiões do País. Uma das aquisições foi no Nordeste, em Feira de Santana, na Bahia, onde há um grande contingente de menor renda. As novas unidades se somaram às cinco existentes espalhadas pelo País.
A meta da companhia é faturar R$ 2 bilhões até 2024, com alta de 60% ante 2022. “Esse crescimento está ancorado na expectativa da volta do consumo popular, principalmente regionalizado”, afirma a CEO da empresa, Talita Santos.
Atenta para esse potencial, neste ano, a companhia pretende entrar no segmento de detergente para louça com a marca Urca, cujo preço é 20% menor do que a líder. A empresa já vende detergente para louça no Norte e no Nordeste e o plano é cobrir o País todo no segundo semestre.
No setor de calçados, a Beira Rio acredita num aumento do consumo da C. Com 12 fábricas no Rio Grande do Sul, a calçadista foca na produção das sapatilhas da marca Moleca – cujo modelo de entrada custa R$ 49,90, em média – e nas sandálias mais baixas. “Estamos preparando os produtos para atender a demanda desse mercado”, afirma Roberto Argenta, presidente da Calçados Beira Rio.
Neste ano, a empresa trabalha com uma previsão de alta no faturamento de 5% a 10%. “O que a gente torce é para que continue o aumento do emprego. Isso é muito importante para manter o consumo constante”, diz o executivo.
<b>Serviços querem surfar na onda popular</b>
Até tradicionais prestadores de serviços já desenharam produtos para a classe de menor renda. O Grupo Fleury, por exemplo, um dos gigantes do setor de saúde, inaugurou no ano passado laboratórios de análises clínicas voltados para essa faixa da população. “O atendimento das classes C, D e E foi uma das avenidas priorizadas (pela companhia)”, afirma a diretora executiva de Negócios, Patrícia Maeda.
Nas suas contas, o potencial de mercado de diagnóstico de análises clínicas no País para as camadas populares é de R$ 20 bilhões por ano. A expectativa do grupo é, em cinco anos, abocanhar pelo menos entre 10% e 15% desse mercado no Rio e São Paulo.
O grupo tem duas bandeiras de laboratório popular. No Rio a marca é Lafe, com 26 unidades em funcionamento, especialmente na Baixada Fluminense. Em São Paulo, a bandeira é Campana, com 7 unidades em operação, uma delas que acaba de ser inaugurada no bairro do Grajaú, na zona sul. A meta é abrir entre 6 e 7 novas unidades na capital paulista este ano.
O preço de um exame de sangue simples é a partir de R$ 6,50, em média, no laboratório Campana, dependendo do que é pedido. O mesmo exame no A+, outra marca do grupo para classe B, custa a partir de R$ 20.
Otimismo dos mais pobres
Desde a eleição presidencial, o humor dos mais pobres melhorou. A confiança no futuro da economia avançou entre as famílias com renda mensal de até R$ 2,1 mil e superou a da faixa mais rica da população – aquela que ganha mais de R$ 9,6 mil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).
Em janeiro, o índice de expectativas nas famílias de baixa renda, apurado dentro da confiança do consumidor, atingiu 108,4 pontos, enquanto entre as famílias de maior renda ficou abaixo de 100 pontos, permanecendo, portanto, no campo do pessimismo.
“Tem um aumento das expectativas que foi influenciado nesse período pós-eleição. Há uma expectativa de que o novo governo faça alguma diferença para as famílias de mais baixa renda”, afirma Viviane Seda, coordenadora das Sondagens do Ibre/FGV. “Mas eu ressalto que há uma expectativa muito forte em relação ao emprego e isso não parece ser uma realidade, algo palpável para gente atualmente, considerando que temos uma atividade econômica que desacelerou.”
A sinalização de que o novo governo deve priorizar o consumo popular ficou evidente no discurso de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no Congresso Nacional. “A roda da economia vai voltar a girar e o consumo popular terá papel central neste processo”, afirmou o petista.
Dono de uma academia no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, Danilo de Oliveira Dias, 35 anos, se diz esperançoso com alguma melhora na economia, mas acredita que esse alívio deve “demorar um pouco para a população em geral”.
Nos últimos anos, com os vários solavancos econômicos enfrentado pelo País, ele viu seu número de alunos recuar para 40. No auge, chegava a 70. “Em alguns meses, a conta fica difícil de fechar. O meu espaço é alugado e ele sempre vai subindo de valor. Cada ano fica mais complicado.”
Hoje, ele diz ter a percepção de que o dinheiro perdeu valor. “O impacto que eu vejo é grande em relação a mercado, eletrodomésticos e carro também, inclusive o popular subiu de valor”, afirma. “Vai levar um tempo para a economia melhorar. Não vai ser uma melhora imediata. Eu vejo que os preços no mercado e da gasolina ainda continuam altos.”
Mesmo num cenário mais difícil, o potencial de consumo das classes C, D e E está longe de ser desprezível. E é exatamente isso o que move, neste momento, as companhias a criarem produtos na medida certa para esse consumidor. No cenário atual, a consultoria Tendências estima que a massa de renda disponível dessas classes deve somar R$ 665,5 bilhões neste ano.
“Existem fatores positivos, mas também limitantes, como o efeito da política monetária, que acaba batendo no custo do crédito e nos índices de inadimplência”, afirma Isabela Tavares, economista da Tendências.
Para Flávio Calife, economista da Boa Vista, a inadimplência, o endividamento, os juros e a demanda por crédito, neste momento, não estão em níveis propícios ao avanço do consumo popular no curto prazo. A inadimplência do consumidor encerrou o ano passado com avanço de quase 20%, segundo o indicador do birô de crédito, e segue com tendência de alta.
Mas ele pondera que há fatores exógenos que podem ter impacto no consumo, como o “Desenrola”. “Se o programa acontecer, poderá dar algum tipo de estímulo ao consumo”, afirma.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>