Um tesouro da música brasileira está guardado há 45 anos. E não há previsão de que ele saia das profundezas. Em agosto de 1971, morando no exterior, João Gilberto veio a São Paulo gravar um programa na TV Tupi com Caetano Veloso e Gal Costa. Além do especial, que foi exibido em outubro, a gravadora Phonogram lançaria seus melhores momentos em um álbum produzido por Manoel Barenbein, que havia dirigido as gravações dos discos tropicalistas. João, desde sempre perfeccionista, descartou a maior parte do material e o projeto foi cancelado.
O especial de TV se perdeu, mas as fitas que captaram o áudio estão preservadas. As músicas poderiam ser comercializadas se os artistas autorizassem. A Universal Music, detentora do material, não tem previsão de lançá-las, nem de fazer edições especiais dos álbuns de João em seu poder. No início dos anos 1990, ele processou a EMI, cujo catálogo hoje está com a Universal, por adulterações em seus primeiros álbuns, o que inviabiliza reedições.
O encontro entre João, Caetano e Gal teve direção de Fernando Faro e Álvaro Moya e produção de Cyro Del Nero. Era a celebração da amizade entre o criador de um estilo e dois de seus seguidores mais fiéis. Caetano, ainda no exílio forçado, havia estado no Brasil no início de 1971 para celebrar o aniversário de casamento dos pais, sofrendo pressão dos militares. Ele já havia retornado a Londres quando recebeu uma ligação de João. “É Deus quem está me pedindo para eu lhe chamar. Ouça bem: você vai saltar do avião no Rio, todas as pessoas vão sorrir para você. Você vai ver como o Brasil te ama”, disse ele a Caetano, como este transcreveu em seu livro Verdade Tropical.
Quando Caetano chegou aos estúdios da Tupi em São Paulo, no bairro do Sumaré, todos se emocionaram. “No tropicalismo vivemos muitos fatos que não haviam sido programados, como a partida de Caetano e Gil. Esse encontro era mais um, mas absolutamente especial”, lembra Barenbein, que estava de mudança para a Itália. Aquele trabalho encerraria uma fase áurea de sua carreira.
Em dois dias, João relembrou Chega de Saudade, Rosa Morena, Desafinado e outros clássicos da bossa nova. Com Gal e Caetano, ele cantou duas músicas de Dorival Caymmi: Você Já Foi à Bahia? e Saudade da Bahia. Sozinho, Caetano apresentou A Tua Presença Morena, Asa Branca e Triste Bahia. Sua Saudosismo, homenagem maior ao ídolo, foi interpretada por Gal, que faz dueto com o anfitrião em Largo da Lapa.
Após as gravações, Barenbein recolheu o material e foi para o estúdio. Uma semana depois, finalizou a montagem do que seria o álbum. “Havia uma cláusula em contrato que dava a João o direito de não lançar o disco se ele não gostasse. Em um primeiro momento, soube que ele havia aprovado. Depois, já a caminho da Itália, ouvi dizer que ele não havia gostado de nada e desistiu.” O produtor afirma que o material tem ótima qualidade técnica e musical e, se lançado, preencheria uma lacuna. “Todos os envolvidos no especial ficaram um pouco desapontados pelo disco não ter saído. O que eu editei é muito emocionante e merece ser lançado. Mas estamos falando de João Gilberto, que é mesmo um gênio. Ele tem um ouvido melhor que o nosso.”
André Midani, que era diretor da Phonogram à época, foi quem escalou Barenbein para dirigir e montar o disco. Ele também lamenta seu ineditismo. “Sem dúvida teria um impacto artístico, pois todos eles estavam no auge. E também haveria, provavelmente, o impacto político, pois Caetano veio do exílio só para participar desse especial.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.