Enzo Lopes ocupava o terceiro lugar nas últimas voltas da nona etapa do AMA Supercross, na pista de terra construída dentro do lendário circuito Daytona Speedway, em março, nos EUA, quando teve de lidar com uma falha na embreagem de sua moto. O imprevisto adiou o primeiro pódio de um brasileiro no campeonato, disputado desde a década de 1970, mas não impediu que o gaúcho de 22 anos fizesse história ao cruzar a linha de chegada em quinto, mesma posição alcançada por ele na classificação geral da classe 250cc Leste desta temporada, encerrada em maio.
O jovem piloto da equipe privada Club MX se juntou a Jorge Balbi Jr., quinto colocado duas vezes em 2008, no topo da lista de representantes do Brasil com as melhores colocações em corridas do AMA Supercross. No ranking final, ele foi o primeiro a integrar o Top 5, ainda em 2020, antes de repetir o feito neste ano. Dias após se colocar novamente entre os cinco primeiros, Enzo já estava na casa de sua família em Lajeado, interior do Rio Grande Sul, recuperando-se de uma cirurgia para corrigir um problema que fazia seu braço direito inchar em poucas voltas e prejudicou seu desempenho durante toda a competição.
O antebraço tomado pelo intenso incômodo é o mesmo no qual está tatuado o nome "Leonardo", uma homenagem ao irmão que Enzo nunca conheceu. O piloto veio ao mundo cinco anos após Leonardo morrer afogado, em 1994, com pouco mais de um ano. Naquele momento, o pai deles, Leo Lopes, piloto com trajetória nacional no esporte, viveu os piores dias de sua vida. Perdeu a pessoa que mais amava e com a qual esperava compartilhar seus sonhos e sua maior paixão: o motocross.
Leo e a mulher, Delaine, seguiram em frente, tiveram a filha Alexia em 1995 e deram a ela um irmãozinho, Enzo, em 16 de agosto de 1999. O garoto que hoje compete na série de corridas de moto off-road mais popular dos Estados Unidos foi colocado em cima de uma motocicleta bem cedo, aos três anos, por um pai dedicado a acender a chama do esporte adorado por ele. Naquela época, o padrinho e mecânico Vitor Hugo Pozzebon segurava Enzo por um corda amarrada ao para-lama de sua PW 50 cilindradas.
"Para um pai, ele tinha um menino, que ele via e aspirava que fosse um piloto, e perder isso também foi difícil. Então, quando eu nasci, ele viu todas essas coisas de novo em mim, eu acredito. Para uma família, isso é um baque muito grande, é uma história que muita gente nem sabe, porque eu não comento muito", conta Enzo ao Estadão. "Meu pai não tinha muitas condições e ele só pôde começar a andar de moto com 25 anos. Nasci basicamente em cima de uma moto. Já estava no sangue da família e agora está no meu. Ele foi meu incentivador muito, muito, muito. Até hoje, não conheço ninguém tão apaixonado por moto como meu pai", completa.
O pai conseguiu transmitir a paixão ao filho, que chegou a ter momentos de dúvida a respeito da carreira, mas hoje tem convicção de que seguiu o caminho certo. Enzo participou da primeira corrida quanto tinha 4 anos de idade e não parou mais. Acumulou títulos nacionais nas categorias 50cc, 65cc e júnior, enquanto se dividia entre competições no Brasil e nos Estados Unidos, para onde foi levado pelos pais com o dinheiro recebido após a venda de um terreno da família. Vice-campeão mundial nas 65cc, em 2011, na Itália, recebeu olhares ainda mais atentos ao seu potencial e virou atleta da Red Bull no ano seguinte, aos 12.
A partir daí, se viu inserido em um novo mundo, rodeado por lendas do esporte. Fez um curso no interior do Rio Grande do Sul com o belga Stefan Everts, decacampeão do Mundial de Motocross, antes de ir para a Bélgica treinar na casa do piloto, a convite dele após o contato em terras gaúchas. Hospedado por Everts, ainda teve a oportunidade de se divertir jogando futebol com Antonio Cairoli, italiano seis vezes campeão do mundo. Toda essa vivência, contudo, custou a renúncia a muitas experiências corriqueiras, porém valiosas, proporcionadas por determinadas fases da vida.
"Eu nunca tive adolescência, essas coisas. Eu sempre estava em corrida, eu não vivi a fase normal de um adolescente, essas fases dos 15 aos 20. Eu sempre estive em uma pista de motocross, sempre treinando, na academia. Não ia em festa, nunca bebi na minha vida, sempre fui focado no objetivo maior. Abri mão de tudo. O cara abre mão da vida pessoal, por esse objetivo, por esse sonho, mas quando você tem um resultado, uma pontinha de uma sensação boa, faz tudo valer a pena", afirma Enzo.
RECONHECIMENTO NOS EUA
Boas sensações não faltaram em 2022, apesar de uma série de dificuldades enfrentadas, do problema no braço às falhas na sua Yamaha YZ250F. O ano foi de marcas importantes para o piloto. Além do quinto lugar em Daytona, fez pela primeira vez o melhor tempo de um treino classificatório, na etapa final, em Salt Lake City, mas teve de abandonar a corrida por problemas na moto. Antes disso, já vinha conseguindo bons resultados nos treinos. Na hora das corridas, entretanto, a maior duração sempre representava o desafio de continuar acelerando forte a despeito do braço direito enrijecido.
"Eu sei que tenho a velocidade, tanto que nos treinos estou sempre na frente, entre os três, cinco primeiros, só que na corrida, com o problema que tenho no braço, eu não consigo andar mais de quatro voltas sem meu braço inchar. O braço incha muito e não tenho mais força. É praticamente andar com um braço só, ainda mais no Supercross, o mais alto nível, até uma unha encravada atrapalha às vezes, imagina correr com um braço só. Meu treinador, Maguila, dizia que o que estava fazendo era incrível", pontua.
Depois de operar o ombro no fim de 2020 e viver um 2021 prejudicado por novas lesões, Enzo Lopes ganhou, na atual temporada, o gás necessário para seguir com seus planos ambiciosos e conquistar mais espaço na modalidade. Correndo entre os profissionais no AMA Supercross desde 2019, viu seu nome ganhar mais destaque na imprensa local aos poucos, até conquistar o público nativo com o desempenho deste ano.
Não à toa, a tradicional revista RacerX, especializada em motocross e supercross, colocou-o na lista de pilotos que mais evoluíram. Além disso, recebeu elogios do ex-piloto Ricky Carmichael, maior campeão do AMA Supercross, com 15 títulos, e comentarista da NBC Sports. O brasileiro virou um personagem de interesses dos fãs americanos do esporte, tanto pelo desempenho quanto pelo bom humor que demonstrou em entrevistas.
"Para quem vem de fora, tem de se provar mais duas, três, várias vezes. Então, este ano, como fiz resultados bons, até na TV, os comentaristas falaram mais o meu nome, foi muito bom. Este ano, comecei a ganhar meu espaço. Nem se compara aos outros meninos, que já estão lá há mais tempo, têm nome grande, mas consegui ganhar meu espaço, ganhar meu valor. Levou um tempo e vários resultados bons. Lá, a indústria do esporte é difícil, você tem de conhecer as pessoas, às vezes nem é tanto os resultados, mas quem você conhece. É uma coisa que entendi com o tempo", afirma o piloto.
O supercross é tratado como a categoria mais importante das corridas de moto off-road nos Estados Unidos, e a diferença para o motocross tradicional é no formato. As provas de motocross são disputadas em pistas projetadas em terrenos majoritariamente rurais, com circuitos de cerca de 1,5km e saltos mais longos, além de curvas e costelas, como são chamadas as séries de lombadas pelas quais os pilotos passam. Nesses trajetos, os acidentes naturais da área podem ser incorporados como obstáculos.
A pista do supercross, por sua vez, também possui rampas, curvas e costelas, porém é mais compacta. Construída em arenas ou autódromos, com o intuito de criar a atmosfera de espetáculo, tem saltos em sequência e proporciona maior emoção aos espectadores. As etapas costumam ser sediadas em locais emblemáticos para os esportes de velocidade, como o circuito Daytona International Speedway, onde é disputada anualmente a corrida inaugural da Nascar.
Tanto a série de corridas de motocross quanto a de supercross dos Estados Unidos são organizadas pela American Motorcyclist Association (AMA), mas a categoria mais nova superou a "mãe" em interesse por causa da acessibilidade e da comodidade oferecidas por seu formato. Quando o assunto é motocross em estado puro, há um nível maior de importância atribuído ao Mundial de Motocross, competição na qual a maioria das etapas ocorre na Europa e os europeus são protagonistas. O Brasil já fez parte do evento. A última vez foi em 2013, quando sediou um GP em Penha, Santa Catarina.
Enquanto dá passos largos para construir sua imagem profissional nos EUA, Enzo já cultiva uma base fiel de admiradores em sua terra natal, onde é tratado como ídolo pelos espectadores de competições de moto off-road. O esporte está longe de integrar a lista dos mais populares do país, mas tem um público formado há um bom tempo e uma vasta gama de praticantes amadores, além de ostentar a própria prateleira de ídolos.
Dos nomes com carreira internacional, destacam-se Pedro Bernardo "Moronguinho", que chegou a correr no Japão na década de 1980, e Roberto Boettcher, bicampeão sul-americano nos anos 1970 e único de sua geração a disputar uma temporada completa do Mundial, em 31 países. Há ainda pilotos como Ylton "Paraibinha", declarado campeão póstumo nas 250cc do Brasileiro de 1998 após morrer durante um treino, e outros como Álvaro "Paraguaio", Eduardo Saçaki, Jorge Negretti, Milton "Chumbinho" e Nivanor Bernardi.
Recentemente, o grande nome do esporte foi Antonio Jorge Balbi Jr., que fez história com dois quintos lugares na 450cc do AMA Supercross em 2008, após construir uma carreira vitoriosa em território brasileiro. Ao longo dos anos, outros pilotos do Brasil se aventuraram na série americana e tiveram bons resultados, embora não tão consistentes quanto Balbi, como é o caso de Jean Ramos, cuja melhor posição é um 12º lugar na 250cc Costa Oeste. Hoje, além de Enzo, há nomes como Ramyller Alves e Caio Lopes.
INSPIRAÇÃO EM SENNA
Enzo Lopes admira seus contemporâneos e conhece bem a história dos ídolos que desbravaram os caminhos de terra e os obstáculos do motocross antes dele, mas seu principal ídolo vem de outro esporte. O jovem sonha em representar para o motocross um pouco daquilo que Ayrton Senna representou para a Fórmula 1, dentro das devidas proporções.
"Eu sempre falo em todas as entrevistas que o meu sonho é ser o Ayrton Senna do nosso esporte. O cara foi um ídolo mundial, e eu queria ser no nosso esporte, mas não sou um 1% disso ainda. Então, ser um cara admirado, as pessoas ligarem para assistir o AMA Supercross por causa de mim ou irem a uma corrida por causa de mim, isso é muito especial, mas não sei, acho que dá para fazer muita coisa ainda para ser um ídolo no esporte", avalia.
Ao dizer isso, o gaúcho se refere à missão que assumiu de abrir portas no Brasil para o esporte. Por aqui, a vertente do motocross que passou mais perto de se aproximar do grande público é o freestyle, no qual os pilotos fazem manobras e são avaliados por juízes. Eventualmente, campeonatos são exibidos nas manhãs de domingo da TV Globo, que já transmitiu muitos backflips de Joaninha, o primeiro brasileiro a efetuar o giro mortal. Tal variante pode ser vista também no X-Games e tem ídolos populares, como Travis Pastrana. Enzo acredita que o formato de corridas também tem potencial para "furar a bolha."
"Sei que é um esporte nichado, mas é muito valorizado em outros países, é um esporte grande. Acredito que o caminho mais curto é fazer resultado atrás de resultado, ganhar corrida e tentar ganhar o meu espaço. Às vezes é difícil que as coisas tenham que ser assim, mas acho que é assim mesmo. Se Deus quiser, ano que vem eu vou crescer um pouco mais", comenta.
Dedicado a se manter próximo do país natal para expandir o esporte, Enzo é apoiado pela Yamaha Racing Brasil e correu uma etapa do Arena Cross, o supercross brasileiro, no ano passado. Venceu de forma dominadora na categoria AX2, equivalente à que disputa nos EUA, e fez a alegria dos fãs. Neste ano, apesar de ter voltado ao Rio Grande do Sul para se recuperar da cirurgia, está prestes a retornar às pistas americanas, pois vai disputar o AMA Motocross. Após não participar das primeiras corridas, correrá a partir da etapa de Red Bud, em Buchanan, Michigan, dia 2 de julho.
"Para mim, estar nesse lugar agora é muito massa, muito gratificante. É legal viver essa fase agora porque os últimos anos não foram tão bons, então, sei lá, dá um negócio bom aqui por dentro", celebra. "Agora é recuperar. Eu tenho o preparo físico, tenho a moto, tenho tudo para alcançar o pódio e as vitórias. É só questão de tempo, na verdade", finaliza.