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ESPAÇO AAPAH – Quando o distrito de Cumbica quase virou uma cidade

Se olharmos a trajetória do distrito de Cumbica, poderemos encontrar ali todos os desafios de uma grande cidade do século XX: ocupação em torno de loteamentos particulares, rápido crescimento industrial, carência de infraestrutura, mutações na vocação econômica, levas e levas de novos moradores criando mais problemas de infraestrutura. Ao olhar de relance a história do bairro e relacionarmos estes desafios como característicos de uma cidade, podemos até entender porque o bairro nos idos dos anos noventa teve um movimento de secessão, com importantes figuras a frente. E sobre esta história, que trataremos a seguir.
 
Etimologia da palavra “Cumbica” seria originária da língua Tupi, significando “nuvem baixa”, ou neblina. Existem outras hipóteses facilmente encontradas na internet. É também possível afirmar que o centro do vale em que hoje se localiza o aeroporto era ocupado por povos indígenas que se estabeleciam às margens do Baquirivu-Açu em busca da caça e coleta, tendo como proteção o clima mais temperado na região, além da proximidade com o mais importante rio de São Paulo: o Tietê.  Os índios maromomis de hábitos nômades e espalhados pela Serra do Jaguamimbaba (atual Serra da Cantareira), provavelmente passaram muitas vezes pela região.
 
Durante muitos anos, a área foi ocupada por sitiantes e posseiros, até que, após aquisições, se tornou uma fazenda de posse de Abílio Soares, tendo quase 10 milhões de metros quadrados. Este espaço englobava onde hoje é o Aeroporto, a Base Aérea, os bairros de Cumbica e até o Parque Ecológico do Tietê. 
 
Um episódio trágico marcou a história da região. O então proprietário Abílio Soares entra em desavença com a família Siqueira Bueno pela demarcação de terras na região. Em 1919 ele é assassinado, conforme algumas fontes, sob ordens da família.  Um relato não comprovado indicaria inclusive que as ações abolicionistas aos quais, Abílio Soares esteve envolvido, seriam também as motivações do crime.
Posteriormente (1922), os lotes foram adquiridos pela família de Eduardo Guinle. Em 1940, parte da terra foi doada para o governo federal que criou a Base Aérea de São Paulo. A menor parte é vendida para a Clawi Empreendimentos, responsável pelo loteamento.  As grandes indústrias são atraídas pela iminência ampliação da via que ligava São Paulo ao Rio de Janeiro. Em 1951, a inaugurada Rodovia Presidente Dutra se torna o mais importante chamariz de desenvolvimento da cidade. 
 
Sob o pomposo nome de Cidade Satélite Industrial de Cumbica, o bairro iniciou a sua expansão, atraindo inicialmente empresas. A ideia era ser um condomínio industrial com largas avenidas, tendo o amparo de uma série de equipamentos públicos. Como muitas coisas no Brasil e, principalmente, quando se trata de planos urbanos, a ideia e a prática tomaram caminhos diferentes. 
 
A atração das indústrias conviveu a partir da década de 1970 com outras chegadas: a ocupação das áreas em torno da rodovia e do aeroporto. É interessante observar como esta convivência é marcada por contradições e fragilidades típicas de um bairro que cresce sob um planejamento urbano inexequível: nos anos 1980, o bairro de Cumbica já era a região que mais pagava ICM ao município de Guarulhos, e ainda sim convivia com falta de asfaltos, saneamento,  escolas e transporte público, assim como de dignidade para os moradores do seu entorno.
Uma tentativa de convergir às aspirações do empresariado e de se cobrar medidas do poder público foi à criação da ASEC (Associação dos Empresários de Cumbica) na década de 1980.
 
Entretanto, a distância entre o empresariado e os moradores do bairro era tamanha, a ponto de um dos secretários do prefeito Paschoal Thomeu, em 1990, afirmar em uma matéria do jornal Repórter da Cidade: “Muitos empresários jamais tinham pisado numa rua do bairro. (…) Antes não era uma preocupação maior do empresariado saber como viviam os moradores vizinhos das fábricas.” Fica nítido nesta reportagem a presença de vozes dissonantes na região e que entendiam que o caminho seria a separação. 
 
Em 1999, dois anos após a maior crise política da cidade, as tentativas de emancipação ganharam as paginas de um jornal de grande circulação, o Estado de S. Paulo. A matéria no dia 19 de março de 1999 traria um panorama interessante sobre os intentos autonomistas.  O mapa que trazia a proposta do novo município, agrupava uma imensa região, absorvendo além dos bairros de Cumbica, os dos Pimentas, do Itaim, da Água Chata, da Aracília, do Sadokim, de Bonsucesso e do Presidente Dutra. Em população seria quase equivalente a metade da cidade.
 
As posições foram bem divergentes. De um lado algumas lideranças como José Roberto Lapetina, presidente da Associação dos Empresários de Cumbica, entendia a situação de abandono desesperadora e que apenas com a emancipação haveria mais investimentos no local. Outro líder, Reinaldo Affonso, questionava a não eleição de representantes do bairro, mesmo em uma área que detinha um terço dos votos. Havia um vereador que se posicionava a favor da emancipação: Orlando Fantazinni. Ele simpatizava com o movimento, pois, segundo o então vereador, numa cidade do porte de Guarulhos seria inviável a fiscalização dos poderes públicos. 
 
De outro lado, uma resistência política tendo a frente o prefeito da época, Jovino Cândido que rebatia na lata: “Não é uma proposta séria”. Outra liderança contrária era Luiz Roberto Mesquita, presidente da Associação Comercial, Industrial e de Serviços de Guarulhos, que defendia a união em torno da cidade, refutando assim qualquer medida separatista. É nítido que não havia unanimidade e mesmo entre os empresários, a ideia não prosperara como solução. 
 
Um argumento que escapa em uma primeira análise na matéria jornal, mas que é de importância fundamental, era a fala da então coordenadora do Projeto Redescobrindo Guarulhos, Marli Araújo. Afirmava a arquiteta: “A emancipação não resolve os problemas e Guarulhos perderia sua identidade com a separação do núcleo de Bonsucesso.” Este argumento inclusive é aludido na matéria como o mais poderoso para impedir a emancipação, pois a Igreja de Bonsucesso se constituiria no mais importante vínculo sócio-cultural com o conjunto maior da cidade, tornando-se praticamente inviável a ideia de emancipação. 
 
Na consulta ao material utilizado para este artigo, não foram encontradas outras informações.  Aparentemente o plebiscito, para o bem maior da cidade, nunca foi realizado e a ideia foi devidamente enterrada. Será?  
 
  *Historiador, diretor geral da AAPAH, coautor dos livros “Cecap Guarulhos – Histórias, Identidades e Memórias”, “Guia Histórico Cultural de Logradouros – Lugares e Memórias de Guarulhos” e “Signos e Significados em Guarulhos – Identidade – Urbanização – Exclusão”.
 
 

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