Como quase tudo em 2020, o Baile do Menino Deus está diferente. O tradicional espetáculo teatral, inspirado no auto de Natal escrito nos anos 1980 por Ronaldo Correia de Brito e Francisco Assis Lima e encenado anualmente desde 2003 na praça do Marco Zero do Recife, terá um formato alternativo por causa da pandemia de covid-19. Se, em 2019, a ópera popular teve uma plateia de 70 mil pessoas, desta vez a peça foi filmada e será exibida nos dias 23, 24 e 25 de dezembro pelo canal do YouTube do Baile e no dia 26 de dezembro pela TV Globo em Pernambuco.
Apesar do novo formato, sem interação com o público, a essência do espetáculo permanece a mesma, garante Ronaldo, para quem a direção geral do Baile significou "romper com uma teia de mortes". "Todo mundo estava sob um véu preto e de repente o afastou e viu luz. E foi uma alegria impressionante. O filme passa essa alegria impressionante e uma grande serenidade", afirma o escritor em entrevista por telefone ao <b>Estadão</b>.
"Tínhamos feito um grande espetáculo em 2019 e estávamos na perspectiva de um grande espetáculo em 2020. Já estava muito bem encaminhada a produção e nossos patrocinadores estavam felizes. Mas aí veio a pandemia, que representou isolamento e a pior crise financeira que já se viu no País. Somente em agosto o prefeito disse que o espaço do Marco Zero ficaria fechado e um espaço de convivência pública estaria aberto."
Com tão pouco tempo à disposição, Ronaldo e sua equipe de mais de 200 pessoas precisaram reformular completamente o espetáculo. Transformaram a peça em filme – e o autor enfatiza a todo momento que o que foi feito com o Baile este ano é cinema – e adequaram a obra às circunstâncias. A cargo da produção esteve Carla Valença, da Relicário Produções, que também participou de outras edições do Baile.
Em 2020, Ronaldo introduziu novos textos ao auto, retirou as interações entre atores e plateia e criou uma nova cena em que os protagonistas, "diante de uma cortina fechada, se perguntam se vai ter baile. É muito bonito o diálogo deles", comenta o dramaturgo. "A grande dificuldade foi motivar as pessoas. Ninguém estava querendo romper o casulo, a inércia, sair de casa", acrescenta o autor.
Para viabilizar a produção, Ronaldo conta que foi contratada uma equipe com seis médicos e dois consultores. Todos os integrantes eram testados com frequência e seguiam um rígido protocolo sanitário, o que permitiu que ninguém contraísse a covid-19.
Dois dos principais artistas convidados por Ronaldo para capitanear a transposição do espetáculo para o cinema são a cineasta Tuca Siqueira, diretora de filmes como Amores de Chumbo, e o fotógrafo Pedro Sotero, responsável pela direção de fotografia de obras como Bacurau. Ambos são jovens e, como brinca Ronaldo, "foram educados pelo Baile".
"Tenho a sorte de ter pais que me levavam ao teatro. Eu assisti ao Baile quando era criança e na adolescência fiz parte do Balé Popular do Recife. Então, tenho muita familiaridade com as músicas do Baile, elas me trazem uma memória afetiva muito grande", revela Tuca, que chorou assistindo ao espetáculo no Marco Zero em 2019 e se surpreendeu com o convite para dirigi-lo em 2020. "Fiquei super honrada e emocionada", comenta ela.
Para a diretora, o grande desafio foi transportar para a tela um texto que "tem muita interação entre palco e plateia", mas sem a presença do público. "Já existia um figurino, uma movimentação de cena, um cenário. A minha tarefa foi tentar traduzir o que esse texto quer dizer para as pessoas", explica a cineasta. "É impressionante como o texto é antigo, mas calha incrivelmente com esse ano, com o que a gente está vivendo."
O fio condutor da narrativa do Baile do Menino Deus traz dois protagonistas tentando chegar à casa onde o menino nasceu. Muito do texto original de Ronaldo trata da questão das portas que se fecham, e sobre como abri-las. Em tempos de isolamento social, esse enredo ganha um verniz inesperadamente atual.
Sotero conta que também já era íntimo do espetáculo quando foi convidado para trabalhar na edição deste ano. "Todo mundo do Recife já viu o Baile alguma vez no Marco Zero e tem uma relação de memória afetiva com as canções, as apresentações. Eu tenho o LP, tenho uma relação afetiva com o espetáculo."
De acordo com ele, a equipe optou por um formato "mais intimista" em vez da "estrutura de show" das edições presenciais. "São muitos personagens, muito texto e precisávamos filmar isso de uma maneira interessante, quebrar essa coisa de imagem de DVD e tornar o mais cinematográfico possível, aproximar o espectador. Existe uma distância do palco ao vivo e você nunca consegue ver um close, o rosto, o tecido, os detalhes da performance. Isso dá uma personalidade muito grande", explica o responsável pela direção de fotografia.
"Estar perto do Baile e ter podido me aproximar de tanto brilho, de uma representação cultural e histórica da minha cidade foi muito especial. Que o Baile volte a resplandecer grande no ano que vem", torce Sotero.
Tuca complementa: "Quem segurou a onda de todo mundo nessa pandemia foi a arte, mas quem segurou a onda dos artistas? O Baile é como um presente que a gente está oferecendo para todo mundo, mas foi um presente que primeiro chegou para a gente, por fazer o Baile."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>