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Espetáculo Gabinete de Curiosidades trata do abandono de velhos atores

Em uma das cenas de Gabinete de Curiosidades, o personagem Oneirópolos (interpretado por Zé Adão Barbosa) fala para Disoíonos (vivida pela atriz Arlete Cunha), companheira de uma longa carreira nos palcos, com quem dividiu sucessos e fracassos e hoje, ou melhor em 2040, mora em um asilo público da fictícia cidade de Corrúpnia. "A gente quer continuar pensando, fazendo teatro, mas a gente nem sabe mais que teatro se faz hoje", diz o velho artista, descrente das possibilidades que ainda podem ser oferecidas por seu ofício.

Sob a direção de Luciano Alabarse, o espetáculo gaúcho que fica em cartaz até domingo, 22, no Teatro Anchieta, parte de uma dramaturgia de Gilberto Schwartsmann para criar uma distopia em torno de etarismo, da memória e da paixão que envolve o fazer teatral. A dupla de personagens, cada um com mais de 90 anos, enfrenta o abandono e encontra em um edital recém-publicado a chance de sonhar com a produção de uma peça que os leve novamente ao encontro do público.

Foi justamente a abordagem da velhice, entre a melancolia e o lúdico, que encantou Alabarse quando recebeu o texto de estreia de Schwartsmann, médico e escritor de Porto Alegre, com intenso trabalho na área cultural. "Quem disse que a terceira idade é a melhor? Só se for para quem envelhece com recursos e saúde", analisa. Para o encenador, de 69 anos, a peça trata de uma realidade pouco abordada sobre o meio artístico, o descaso e o abandono a que grandes talentos são relegados no fim da vida. "É triste saber que uma cantora do porte da Leny Andrade ou um ator como Paulo César Pereio, que tanto nos encantaram, vivem no Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro", lamenta.

O ator Zé Adão Barbosa endossa os comentários do diretor. No palco estão duas pessoas que vivem das glórias do passado e sonham com o retorno a uma atividade plena – o que talvez não seja mais possível. "A finitude é muito triste para um artista porque o corpo não é o mesmo, a memória fica debilitada e se perde a capacidade de concentração", comenta o ator de 64 anos. "Eu e a Arlete somos da mesma geração e nós nos projetamos nesses personagens porque eles tratam da nossa resistência e das dificuldades cada vez maiores em relação à nossa carreira."

<b>História</b>

Entre os conflitos e as fantasias de Oneirópolos e Disoíonos, Gabinete de Curiosidades repassa ao público um pouco da história do teatro. A dupla é obrigada pela direção do asilo a encenar peças para "passar o tempo" dos outros moradores da instituição e, diante do recurso, Alabarse coloca no palco fragmentos de clássicos de William Shakespeare, Eurípides, Samuel Beckett e Tennessee Williams. Uma outra homenagem às artes cênicas aparece em um terceiro personagem, representado em intervenções do ator Fernando Zugno. Trata-se de um fantasma que pode tanto evocar o pai de Hamlet como entidades que habitam o imaginário dos artistas.

Alabarse relaciona Gabinete de Curiosidades a O Canto do Cisne, peça de Anton Chekhov, que enfoca um velho ator trancado em um camarim. Não à toa foi o texto que marcou sua primeira direção profissional, em 1974, na mesma Porto Alegre em que nasceu e desenvolveu sua carreira. Em quase cinco décadas, comandou montagens de grandes dramaturgos nacionais e estrangeiros, esteve à frente do Festival Porto Alegre em Cena e prepara uma versão de Esperando Godot, de Beckett, para o fim de março.

Seu espetáculo anterior, O Inverno do Nosso Descontentamento – Nosso Ricardo III, lançado em janeiro de 2022, usava a obra de Shakespeare para abordar a tirania do ex-presidente Bolsonaro. "Lá, fiz uma peça feroz, necessária para aqueles tempos", lembra ele. "Com Gabinete de Curiosidades, trago uma dramaturgia não menos crítica, mas com certa delicadeza, humor e até uma certa esperança, um respiro de que eu também precisava."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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